Os “Sertões” de ontem e de hoje

Pedro Sisnando Leite*

Não pretendo que me interpretem como um defensor da rebelião, como diz o filósofo Bertrand Russell. A desigualdade de classes tem existido desde o alvorecer da civilização. Assim assumem formas muitos simples nas sociedades pobres. Nas comunidades rurais, o homem pode

desejar a riqueza para ter mais bens e a liberdade de escolha para seu modo de vida. Historicamente, os caminhos procurados para escapar dessa humilhação da pobreza são geralmente bloqueados por motivos desarrazoados. É por tais razões que podem ocorrer rebeliões e confrontos sangrentos entre os preteridos e os detentores da riqueza e do poder.

Vou tratar nesta Crônica de uma dessas histórias, que ocorreu aqui mesmo no Nordeste, mas que nem sempre é bem entendida. O celebrado escritor Euclides da Cunha, no seu livro “ Os Sertões”, descreve uma dessas lutas de um povo pobre do semiárido baiano contra tropas militares governamentais.

Cada leitor pode formular conclusões sobre as causas e consequências dessa Campanha dos Canudos, que é o tema central da obra em comentário que agora estou fazendo uma releitura. Dentre meus colegas acadêmicos, tenho observado pelo menos duas interpretações sobre as ocorrências em Canudos relatadas por Euclides da Cunha.

Uma das teses sobre o assunto, observa que a rebelião no sertão visava à restauração da monarquia ou seria uma insurreição contra o regime republicano em instauração. Outros analistas dessa epopeia, teorizam que o movimento era obra do misticismo extravagante difundido pelo asceta Antônio Conselheiro.

De minha parte, tenho uma visão economicista sobre as origens dessa verdadeira guerra. Senão vejamos. Era o final do século XIX, quando Antônio Conselheiro motivou o conflito épico de Canudos (Ba). Isto é, o essencial da obra de Euclides da Cunha foi historiar as ações do cearense de Quixeramobim, Antônio Vicente Mendes Maciel e as lutas armadas ante a tropa do governo Federal, estadual e os místicos seguidores do chamado de Antônio Conselheiro, líder religioso e suposto opositor da Nova República que se instalava no Brasil. Nesses embates entre forças militares bem armadas e os revoltosos, falam-se na morte de 3.100 soldados e 25.000 civis: homens, mulheres, crianças e velhos.

O que nos chama atenção, no entanto, na análise pormenorizada de Euclides da Cunha, eram as condições de vida da população rural. Principalmente naquela região na época em que tiveram lugar essas ocorrências conflituosas. A organização social e econômica prevalecente então gerou uma grande pobreza, miséria e brutal desigualdade de níveis de vida.

A terra não pertencia aos que nela trabalhava. Enquanto isso, os fazendeiros viviam de arrendamento com a participação irrisória dos trabalhadores nos resultados da produção. Sistema, aliás, ainda usual em muitas áreas do Nordeste.

Dominava historicamente na organização social um conflito entre os que viviam parasitariamente como proprietários da terra, e os produtores trabalhando como verdadeiros servos submissos. Era um verdadeiro regime de escravidão. Tais relações de produção, protegidas por formas de coronelismo comuns a muitas localidades nordestinas, provocavam na população rural profundos sentimentos de revolta e desentendimentos contidos pelo medo de represálias.

Com o passar dos anos, sem esperança de solução para essas iniquidades, os agricultores passaram a ir para as cidades, porque no interior não tinham como sobreviver com o mínimo de dignidade. O êxodo tornava-se a única opção. Com a ocorrência de secas ou estiagens periódicas a desgraça era muito maior e insustentável.

Essa observação é para mostrar ao leitor quão devastador eram os padrões de vida de uma população acuada pela inoperância do poder público em oferecer o mínimo de condições de vida para as suas famílias. Em consequência disso, o primeiro apoio que a população buscava era a fé religiosa, que atenuava as tensões sociais e os sofrimentos.

Antônio Conselheiro, astuciosamente usava essa penosa situação para prometer que o “sertão vai virar mar, e que o mar vai virar sertão”, para os que seguiam essa seita idealizada pelo carismático místico.

Mesmo assim, diz Euclides da Cunha, “quando a população não resiste mais a tanta pobreza, vão caminhando afora no êxodo”. Mas volta, passada a seca. O sertanejo regressa para as mesmas privações. Vai, novamente, trabalhar não para si próprio, para o sustento e melhoria de suas condições de vida, mas para os donos da terra, os fazendeiros ricos. Passam os anos, até que outra seca o expulsa para nova retirada ou a morte ceifar sua vida para sempre…

Mais de um século depois do que ocorreu no interior semiárido nordestino, narrado por Euclides da Cunha, muita coisa mudou. Hoje existem estradas, energia elétrica, e mesmo abastecimento de água em muitas cidades e povoados. O carro pipa não foi eliminado para atender às localidades mais remotas nas épocas de estiagem. Mas os serviços de educação avançaram, mesmo que deficiente, e a assistência médica tornou-se acessível para muitos residentes perto dos centros urbanos.

Os pobres agora não são os mesmo daquele longínquo passado. Pode-se dizer que a pobreza absoluta, ou miséria, de modo geral, não é igual a do final do século XIX. Muito idosos estão aposentados pela Previdência Social e nos anos recentes o programa bolsa família proporciona uma ajuda assistencialista a muitas famílias pobres. O grupo considerado miserável ou indigente tem diminuído, mesmo que ainda represente cerca de 20% da população residente no interior e nas zonas rurais do semiárido.

O que é grave atualmente é a pobreza exposta pelas gritantes desigualdades entre as cidades metropolitanas e o campo e entre setores desses agrupamentos. O desemprego e o subemprego atormentam os que querem trabalhar e melhorar as suas condições de vida. Neste particular, há informações que apresentam um quadro não realístico, em face de critérios de estimativa distorcidos da realidade. O problema grave é o desemprego estrutural, permanente, e não os sem carteira assinada ou em trabalho informal.

Como antes, por falta de uma reforma agrária efetiva e sustentável, continuam a trabalhar nas terras dos patrões ou ocupações de terras não regularizadas e instáveis. Um sistema de herança inadequada, gerou o surgimento de uma proporção elevada de minifúndios improdutivos sem condições de oferecer rendimentos para a sustentação de suas famílias.

Os riscos e ocorrência de secas continuam, afetando a vida dos que resistem à atração das cidades, onde podem ser levados para o caos da violência e criminalidade pela falta de trabalho condigno. Muitos ainda são analfabetos absolutos ou funcionais e estão excluídos do progresso econômico e social que a região conseguiu realizar com a industrialização seletiva e pouco empregadora de mão de obra.

Dizem os sociólogos que essa nova pobreza é mais grave do que os pobres anteriores do tempo da revolta dos Canudos de Antônio Conselheiro, que não conheciam a riqueza exorbitante que prevalece hoje ao lado das favelas urbanas ou rurais.

Diante dessa situação contrastante, foi que o saudoso economista Celso Furtado na década de 60 ressaltou nos Planos da SUDENE a necessidade de uma ação global para enfrentar o agudo e crescente desnível entre o Nordeste e o Sudeste nas questões do desemprego ligado à agricultura de subsistência. Na verdade, uma seca como a de 1958 motivou o desemprego de 2 milhões de pessoas, com 500 mil ocupadas emergencialmente nas frentes de trabalho. Somente no Ceará, foram gastos R$ 300 milhões nessas atividades assistenciais, com recursos do Governo Federal e Estadual. A escritora Raquel de Queiroz, em um dos seus livros, denominou aos desvios de verbas que seriam destinadas ao socorro dos desvalidos de ” indústria das secas”.

Com objetivo de elaborar relatórios técnicos sobre a situação dessa calamidade climática, tive oportunidade de visitar como funcionário do Banco do Nordeste várias localidades da região em 1958, inclusive dos sertões da Bahia. O drama vivido pela população desempregada e sem condições sequer para alimentar-se era de cortar o coração do mais empedernido ser humano.

Como estou tratando de uma visão histórica do problema causal da pobreza e das desigualdades econômicas e sociais do Nordeste, vale relatar opiniões que ao longo dos anos estão sendo discutidas e apresentadas aos gestores públicos, sem que esses problemas sejam solucionados.

Na palestra proferida pelo Economista Celso Furtado nos “Encontros Culturais” da Universidade Federal do Ceará (29/03/1984), na qual eu estava presente, ele demonstrou as dimensões da calamidade social que vive as populações residentes nos sertões do Nordeste, sujeitos ao impacto das secas periódicas, como mencionei acima. Ele fez também uma autocritica às politicas adotadas na Região desde a criação da SUDENE: “Tantos as medidas de curto como as de longo prazo têm contribuído para fixar na região um excedente demográfico crescente, sem modificar em nada os dados fundamentais do problema da pobreza”. A referência era sobre um tradicional pensamento regional de que se deve “ fixar o homem ao solo”, mesmo com baixa produtividade e condições de vida deprimentes como ainda hoje existem em muitas zonas rurais do Nordeste.

Tal análise feita pelo saudoso economista há mais de vinte anos continua validada para hoje, daí o título desta Crônica. Ou seja é preciso dar prioridade a transformação da economia da zona semiárida para torná-la mais resistente ao impacto da seca. O professor Roberto Mangabeira Unger, quando Ministro da Secretária de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2009), afirmou em seu documento O desenvolvimento do Nordeste como um Projeto Nacional: “ Assim como não há solução para o Brasil sem solução para o Nordeste, não há solução para o Nordeste sem solução para o semiárido”.

Acredito, no entanto, que as medidas para redução da pobreza rural não está em injetar recursos subsidiados em atividades não sustentáveis. É preciso evitar os erros do passado para não exacerbar o incremento da densidade demográfica sem aumentar a resistência das atividades produtivas ás secas, especialmente quando a produção é de alimentos destinados à população local.

A classe rica e média não têm problemas com aquisição de alimentos importados de outras regiões a qualquer preço, mas os pobres serão sacrificados pois não têm poder aquisitivo para adquiri-los. A diferença de valor entre a época da colheita e na entressafra é geralmente de mais de 100% para os grãos alimentícios. Todos os anos é a mesma cousa, na época da safra vendem seus produtos aos intermediários a qualquer preço e, na entressafra, voltam a comprá-los a preços escorchantes. Mesmo todos sabendo disso, historicamente os melhores solos não produzem para dar de comer a população regional. As políticas são baseadas nas teorias neoclássicas, produzir, vender e comprar segundo as forças de mercado.

Foram, portanto, as políticas de desenvolvimento que deram pouca atenção ao quadro de miséria da Região que, mesmo com melhorias, continua grave como era no tempo de Antônio Conselheiro. Mas ele a rejeitou com o sacrifício de sua vida e de milhares de inocentes revoltados com as forças politicas e militares que se mostraram incompetentes e insensíveis ao atendimento de suas necessidades básicas.

De fato, o Nordeste de hoje conta com mais de 50% de população abaixo da linha de pobreza delimitada pelo valor de ½ salário mínimo . São cerca de 25 milhões de pessoas, sendo que a metade destas está no grupo de miseráveis, vivendo com menos de ¼ de salário mínimo. Acrescente-se que na zona rural, como ocorria no tempo de Antônio Conselheiro, cerca de 70% não conseguiu sair da condição de pobres e marginalizados. A Bahia que é em termos de tamanho e produção global o mais rico do Nordeste, conta atualmente com mais de 5 milhões de pobres, com desigualdades sociais semelhantes à de países mais atrasados da América Latina. Segundo estudos da Universidade Federal do Ceará (CAEN) o “ Nordeste tem o menor nível de bem-estar social do País”, levando em conta itens como segurança, liberdade, habitação e cultura.

Alguns anos atrás, o saudoso professor Raanan Weitz, do Centro de Estudos de Desenvolvimento Rural-Urbano de Rehovot (Israel), disse-me quando de uma de suas visitas ao Ceará que “a pressão das massas rurais pobres está crescendo firmemente em todos os países e encontrando expressão em termos políticos. A não ser que o governo resolva os problemas básicos da pobreza dessas populações – educação, saúde, emprego, habitação -o governo será derrubado, não importa quão forte pretenda ser”. Ao argumentar que os nordestino são pacíficos e resignados para uma revolução, ele concluiu: “ O governo será derrubado por um movimento sangrento ou pelo voto popular e democrático”.

O que se pode concluir, portanto, é que os “Sertões” de ontem guardam muitas semelhanças relativas com os “Sertões” de hoje, mas certamente não teremos um novo Canudos no Nordeste. Mas as lembranças daquele dramático conflito não podem ser esquecidas.

Estamos vivendo hoje no Brasil um enigma. Tornamo-nos a sexta economia do mundo em tamanho, mas estamos com os pés numa areia movediça do atraso nos principais indicadores de desenvolvimento humano. É a abundância no meio de milhões de pobres e miseráveis que esperam ação dos governantes que subestimam a magnitude e gravidade de um problema social e humano desesperador das populações excluídas.

Como disse o pastor Luther Küng, “O que me amedronta não é a ousadia dos maus, mas o silencia e a passividade dos bons”. É urgente que se desenvolva no Brasil a consciência sobre um novo desenvolvimento menos desigual e mais humano.

Seguir um caminho da reciprocidade como propõe o Pe. Pierre Teilhard de Chardin, no seu livro “Convergência do Universo”. “ Uma nova maneira de ver, ligada a uma nova maneira de agir: eis o que falta”.

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