Pedro Sisnando Leite
Introdução
Não sei efetivamente explicar por quê. Mas penso às vezes que existe um elemento determinante para que as coisas aconteçam. Não me refiro às forças extraordinárias do poder de Deus, mas ao mundo da natureza humana. Os historiadores falam que as ideias podem transformar o mundo, enquanto outros dizem, como Karl Marx, que é preciso homens práticos para transformar as ideias em realidade.
Esse preâmbulo é para falar de uma personalidade que muito influenciou o pensamento e as políticas de desenvolvimento do Nordeste do Brasil a partir de meados da década de 50. Trata-se do ex-presidente do Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e do ex-governador do Ceará Raul Barbosa. No momento em que são comemorados os cem anos de seu nascimento, e meio século que assumiu a presidência dessa Instituição por mais de dez anos, sinto-me motivado para falar um pouco sobre esse inesquecível cearense.
Tenho realmente muitas razões para referenciar sua memória. Ele era uma pessoa extraordinária e, segundo minha opinião, não havia nenhuma outra que pudesse ter feito o que ele realizou pelo BNB e pelo Nordeste naquele momento histórico. Em conferência na Comissão de Estudos para a América Latina (CEPAL), em 1959, ouvi uma declaração do Dr. Raul que me deixou muito orgulhoso de ser um funcionário do Banco do Nordeste.
Falando sobre a experiência desse Banco em seus anos iniciais, como agente do desenvolvimento regional, ele concluiu dizendo para uma numerosa e seleta plateia que o escutada atenciosamente: “Quisemos, nesta palestra, mostrar quanto idealismo, quantos esforços ignorados e quanta determinação envolveram a implantação de uma entidade que hoje se apresenta não só como uma afirmação da capacidade realizadora dos filhos da Região, mas como um órgão isento de tantos defeitos que muitas vezes, injustamente, são atribuídos aos investimentos da ação do poder público”.
É oportuno informar que o Dr. Raul Barbosa ocupou a presidência do BNB nos períodos de 1956-1960 e 1962-67. Ele nasceu em 19 de agosto de 1911 e faleceu em 16 de agosto de 1975. Foi Governador do Ceará no período de 1951-54. Como deputado federal batalhou pela aprovação do Projeto de Lei de criação do BNB, decorrente de inciativa do presidente Getúlio Vargas. A exposição de Motivos foi do então ministro da fazenda Horácio Lafer, amigo íntimo e companheiro de Raul Barbosa na Comissão de Finanças da Câmara Federal. Como Governador, liderou um movi mento vitorioso para a localização da sede do Banco do Nordeste em Fortaleza, em disputa com Recife e Salvador.
Foi na administração do presidente Raul Barbosa que ingressei no BNB como bolsista, por concurso público, juntamente com os inesquecíveis amigos Dirceu de Figueiredo Neto e Francisco Alzir de Lima. Ao terminar meus estudos na Faculdade de Economia da UFC, em concursos públicos sucessivos, tornei-me economista e técnico em desenvolvimento econômico do Departamento de Estudos Econômicos do Nordeste (ETENE), onde ocupei várias funções relevantes, até minha aposentadoria. No exercício desses cargos, estive muito próximo do convívio do Dr. Raul Barbosa e pude observar e conhecer sua dedicada atuação na presidência do banco.
Nas comemorações dos cem anos do nascimento dele (ocorridas no dia 20 de agosto do corrente ano), o Banco do Nordeste organizou uma amostra no Centro Cultural do Banco com livros e pertences do homenageado. Nessa ocasião tive oportunidade de lançar um livro patrocinado pelo BNB e pelo Instituto Histórico e Geográfico do Ceará em “memoriam” dessa eminente personalidade. O tema dessa obra é: “Desenvolvimento Agrícola, Industrialização e Pobreza Rural do Nordeste” e trata das atividades de pesquisa e ação do BNB num período de vinte anos, durante os quais muitas das ideias do Dr. Raul estiveram presentes.
Na mesma oportunidade, foi também lançada uma reedição do livro organizado pelo ex-presidente do BNB, Nilson Craveiro Holanda e a colega falecida Maria Olímpia, com documentos de autoria do Dr. Raul Barbosa. O título dessa obra é: “O Banco do Nordeste do Brasil e o Desenvolvimento Econômico da Região”, de cujo texto farei alguns destaques das ideias e contribuições do Dr. Raul Barbosa, afora comentários pessoais sobre suas atividades como gestor dessa instituição. Convém registrar também que a Assembleia Legislativa do Ceará realizou uma sessão solene alusiva ao centenário de nascimento do ex-governador Raul Barbosa, no dia 19 de setembro do ano em curso.
Treinamento de Pessoal e Assistência Técnica Externa
O presidente Raul Barbosa quando assumiu a direção do BNB procurou adotar com todo o empenho as diretrizes estabelecidas na sábia Mensagem que o Sr. Presidente Getúlio Vargas propôs como justificativa para a criação do Banco do Nordeste do Brasil. Na verdade, ocorreu uma providencial circunstância nesse particular. Integrava a assessoria econômica do Presidente Vargas um técnico baiano de alta estirpe e competência que era Rômulo de Almeida, o qual se tornou o primeiro presidente do banco em sua fase de implantação (15/01/1954-01/09/1954).
Tive a grata satisfação de manter um saudável relacionamento profissional com o Dr. Raul durante vários anos, quando ele me ensinou muitas questões pertinentes às influências das doutrinas e ações políticas no mundo econômico. Mas essa é outra história que constará certamente de minha autobiografia, se eu algum dia escrevê-la.
Portanto, voltando à Mensagem do presidente Getúlio, a alma desse documento era criar um Banco especial de desenvolvimento que integrasse as Regiões Nordeste e Leste Setentrional numa economia moderna para superação dos métodos tradicionais de “obras contras às secas”. A mensagem determinava a necessidade de realizar um planejamento regional, imprimindo ao estudo da região a solução desse problema segundo uma diretriz econômico-social.
Para dar suporte a essa missão, a Lei que criou o Banco previu a organização de um escritório técnico de estudos e planejamento econômico da Região. As primeiras providências adotadas para levar avante esse desafio, foi o treinamento de pessoal para dotar o Banco de recursos humanos habilitados para realizar pesquisas e gerir eficientemente as atividades creditícias. No âmbito da assistência técnica nacional, o Banco do Brasil cedeu uma excelente equipe de funcionários que haveria de proporcionar uma contribuição marcante na estruturação do novo órgão. Quanto à assistência técnica internacional, o Banco contou com o apoio da Organização das Nações Unidas que disponibilizou um veterano economista por dois anos.
Foi esse técnico de renome mundial, Stefan Robock, que ajudou a estruturar o Escritório Técnico de Estudos Econômicos do BNB. O mesmo ocorrendo com o treinamento das equipes de profissionais para esse centro de pesquisas e orientou a realização dos primeiros estudos econômicos do BNB. A Food and Agriculture Organization e o Escritório Técnico de Agricultura do Governo Americano prestaram também auxilio através de técnicos especializados em áreas de interesse do BNB.
Uma Visão do Futuro do Nordeste
Na palestra do Dr. Raul Barbosa no Encontro dos Bispos do Nordeste, em Campina Grande (PB), em maio de 1956, foi apresentada uma completa avaliação dos primeiros anos de atuação do Banco na Região Nordeste. Segundo esse histórico relato, as atividades de crédito eram abrangentes, pois se destinavam ao Crédito Rural, Cooperativo, industrial e crédito geral, cada um com seus critérios de atendimento e taxas diferenciadas de juros. Essas operações múltiplas de crédito faziam do BNB uma verdadeira agência de desenvolvimento econômico.
O presidente do Banco fez também observações sobre a necessidade de se assegurar um futuro em longo prazo para o desenvolvimento do Nordeste, chamando atenção para a necessidade de formular-se um plano para esse propósito. Outro fator estratégico para viabilizar esse intuito era a carência de um órgão coordenador dos programas do Governo Federal, cuja inexistência levava a muitos desperdícios.
Merece registro ainda que esse encontro dos Bispos era liderado por Dom Helder Câmara, cearense, muito amigo do Dr. Raul Barbosa. Certamente essa reunião contribuiu muito para que o Governo Federal criasse o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste, que posteriormente se transformasse em Operação Nordeste, precursor da criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Aliás, é bom lembrar que os Bispos realizaram outra grande reunião na Cidade de Garanhuns (PE), para a qual o BNB enviou uma grande representação e eu tive a oportunidade de participar desse evento (1968). Lembro-me que estiveram presentes, além de uma forte representação da Igreja, alguns governadores do Nordeste, o próprio Censo Furtado, destacando-se da representação do BNB, Rubens Vaz da Costa (que é filho desse município), José Nicácio de Oliveira, Nilson Craveiro Holanda e o presidente do BNB.
O pronunciamento do Dr. Raul Barbosa nessa ocasião foi marcante e suscitou muitos debates posteriores, pois seus encaminhamentos focalizavam mudanças nas políticas para o Nordeste baseada na institucionalização de um sistema de planejamento de longo prazo e coordenação dos investimentos do governo Federal orientados para acelerar o crescimento regional, inclusive com a participação ativa do BNB.
A Força da Liderança de Raul Barbosa para o Desenvolvimento Regional
O que o Dr. Raul Barbosa fez no Banco do Nordeste foi ajustar suas ideias e experiência de Deputado Federal e ex-governador do Ceará na formulação de uma nova instituição “especial” investida de uma grande missão: tirar o Nordeste da estagnação, do conservadorismo político e mitigar a grande pobreza existente em meio de práticas de corrupção enraizadas secularmente. Vale contextualizar que antes de se tornar presidente do BNB, o Dr. Raul Barbosa tinha sido chefe da Assessoria Jurídico do BNB e conhecia a magnitude do desafio que teria de enfrentar.
Mas isso não era tudo. Desde o início, ele compreendeu que necessitava solicitar ajuda interna e externamente para a construção não apenas de um edifício, mas a transformação econômica e social de praticamente um país. É difícil explicar o significado do avanço dessas ideias na década de 60. A economia do desenvolvimento ainda estava em construção, era pouca a literatura em português dessa ciência e os cursos de economia estavam ainda fundamentados na formação jurídica de seus professores com formação acadêmica em nível de graduação.
Em toda a Região, não existia um único curso de mestrado em finanças e economia e tão pouco pessoas com cursos de doutorado, mesmo que formados no exterior. Afora os técnicos das missões das organizações das Nações Unidas, o BNB contava com a colaboração de técnicos com pós-graduação apenas do economista gaúcho Diogo Adolfo Nunes de Gaspar, que fizera seu curso de mestrado nos Estados Unidos e foi contratado para ser o chefe do ETENE.
Daí a importância do apelo do presidente aos seus funcionários para uma extrema dedicação ao estudo e a fidelidade ao trabalho dedicado e voluntarista. O discurso, a personalidade e a vontade firme em cumprir uma missão em benefício do povo do Nordeste, demonstrada pelo Dr. Raul Barbosa, contagiou a todos nós que constituíamos o corpo funcional do Banco em todos os níveis. Outra iniciativa determinante para salvar o Banco de influências do clientelismo dominante na Região foi a blindagem da instituição com concursos públicos e os rígidos critérios técnicos para o exercício de todas as funções de confiança.
Mas essa é uma história que ainda não foi escrita e que procurei abordar superficialmente no livro que lancei durante as comemorações do centenário de nascimento desse valoroso cearense, conforme já mencionado antes.
Em função dessas circunstâncias, vale lembrar resumidamente alguns dados que caracterizavam o panorama desafiador da economia regional naquela ocasião em que o presidente Raul Barbosa buscava delinear os caminhos para a nova instituição desenvolvimentista.
Tomando por base os dados do censo de 1960, a população do Nordeste era de 22 milhões de habitantes, correspondente a 32% do efetivo demográfico do País. Dos nove Estados que formavam a Região, a Bahia era a mais populosa, com 5,9 milhões e quase a metade do território. Em seguida situava-se Pernambuco e o Ceará, sendo o Estado de Sergipe o menor com apenas 260 mil habitantes. A participação da renda total regional no Brasil era de 13%, enquanto em termos per capita essa relação era de um terço da Região Centro Sul.
Para que o Banco do Nordeste pudesse direcionar suas ações e prioridades, foi atribuída ao Escritório Técnico de Estudos Econômicos (ETENE) a tarefa urgente de realizar estudos para fundamentar a atuação do banco e subsidiar o Governo Federal na reorientação de suas políticas para o Nordeste. A primeira Proposta de Orçamento de Aplicações do BNB encaminhada por Dr. Raul Barbosa, e aprovada pela diretoria do Banco, ocorreu no ano de 1961. Foi a partir desse momento que o Banco começou a elaboração de um detalhado Plano de Ação com vistas às atividades financeiras da Instituição e do desenvolvimento regional.
Entre muita das questões tratadas nesse Plano, é oportuno mencionar algumas preocupações que então se constituíam graves problemas a serem superados para a obtenção de um desenvolvimento mais equilibrado.
Sem dúvida, o assunto dominante então era a constatação das disparidades nos ritmos de crescimento regional no Brasil, em desfavor do Nordeste. Dentre as prováveis causas dessa situação poderia ser o baixo nível de capitalização da Nordeste; transferência de recursos da Região para o Centro Sul; insuficiente expansão do setor externo; deficiência da política fiscal compensatória. Além disso, no setor produtivo, era destacado o insuficiente setor industrial e a existência de uma agricultura desarticulada e apoiada em tecnologia tradicional.
Deve entender-se, no entanto, esclarece o Dr. Raul Barbosa, que a peça fundamental no processo de desenvolvimento do Nordeste é o Plano da SUDENE com o delineamento de toda a política governamental de investimentos em obras e serviços públicos, onde o banco estava integrado liderando os empreendimentos diretamente rentáveis e complementares.
O Olhar Estratégico do Dr. Raul Barbosa
Cabe ao final desta Crônica reconhecer que o Dr. Raul Barbosa tinha na sua índole de administrador moderno observar o passado, mas olhar principalmente para o futuro. Certamente baseado em sua própria experiência e nos estudos do ETENE e do professor Stefan Robock, ele expressou muitas vezes que o desenvolvimento do Nordeste precisava ter uma orientação global e não setorial.
Todos os problemas econômicos são inter-relacionados, dizia. “Não se pode considerar o desenvolvimento agrícola sem levar em conta também o desenvolvimento industrial. É um grave erro estratégico tratar do desenvolvimento urbano isoladamente do mundo rural”.
O desenvolvimento econômico do semiárido não deve visar apenas o combate à seca, ou conter as emigrações em áreas onde a população não conta com condições de viver adequadamente, mas reorientar o sistema produtivo, era outra tese pouco compreendida na época, e ainda hoje.
Mas verdadeira.
Sem dúvida, a mensagem mais simples e eficaz na no campo do desenvolvimento econômico, deixada por Raul Barbosa, é a seguinte: “O principal objetivo da política econômica do Nordeste deve ser o crescimento da produção e da produtividade, com suficientes oportunidades de emprego e bem-estar”.