Há 30 anos em discussão no Brasil, a reforma tributária (PEC 45/2019) foi aprovada em dois turnos no Senado nesta quarta-feira (08/11).
Nas duas etapas, a proposta foi aprovada por 53 votos a 24. Eram necessários 49 votos favoráveis (3/5 da composição da Casa) para que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) fosse aprovada no Senado.
A proposta foi aprovada em uma primeira votação na Câmara dos Deputados em julho deste ano, mas sofreu alterações significativas pelos senadores. Por isso, o texto voltará à Câmara para análise das mudanças feitas no Senado.
Somente se as duas Casas concordarem completamente com o texto, a reforma será promulgada na forma de emenda constitucional em sessão do Congresso Nacional. A expectativa do governo e do Congresso é de que esse processo possa ser concluído ainda este ano.
O governo diz que o objetivo da reforma é simplificar o sistema tributário brasileiro, melhorando o ambiente de negócios e facilitando o crescimento da economia – a discussão é polêmica, porém, pois mexe com os interesses de setores econômicos diversos e de entes federativos, como Estados e municípios.
Parlamentares de oposição têm defendido que a reforma aumentará a tributação e traz muitas exceções.
“Quem teve mais condição de gritar, de brigar, de fazer o lobby funcionar está contemplado com inserções dentro do projeto em tela. Aqueles que não tiveram essa força ou esse cuidado vão ser obrigados a suportar uma carga tributária — pasmem, senhores — que vai ser a maior do mundo. Nós estamos falando de um assunto muito sério, em que não há nenhum estudo de impacto. O que nós temos, na verdade, é uma perspectiva de um IVA maior do que os 27,5%”, afirmou o líder da oposição, senador Rogerio Marinho (PL-RN).
No entanto, definições específicas, como as alíquotas dos impostos, deverão ficar para 2024.
Considerando o texto aprovado no Senado, o que efetivamente muda com a reforma tributária? Entenda em 5 pontos as principais mudanças.
1. Simplificação de impostos
A reforma tributária prevê a substituição de cinco tributos (PIS, Cofins e IPI, de competência federal; e ICMS e ISS, de competências estadual e municipal, respectivamente) por um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA).
O IVA é um imposto que incide de forma não cumulativa, ou seja, somente sobre o que foi agregado em cada etapa da produção de um bem ou serviço, excluindo valores pagos em etapas anteriores.
O modelo acaba com a incidência de impostos em cascata, um dos problemas históricos do sistema tributário brasileiro.
Atualmente, mais de 170 países adotam o IVA, entre eles Canadá, Austrália, diversos países membros da União Europeia e emergentes como Índia, além de vizinhos latino-americanos, como México, Colômbia, Chile e Argentina.
O IVA brasileiro será um IVA Dual, dividido em duas partes: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal; e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de Estados e municípios.
Com a reforma, a cobrança de impostos deixará de ser feita na origem (local de produção) e passará a ser feita no destino (local de consumo), uma mudança que visa dar fim à chamada guerra fiscal – a concessão de benefícios tributários por cidades e Estados, com objetivo de atrair o investimento de empresas.
Pela proposta, produtos importados devem pagar o IVA da mesma forma que itens produzidos no Brasil, já exportações e investimentos serão desonerados.
Haverá uma alíquota-padrão e outra diferenciada, para atender setores como a saúde. A alíquota geral será definida por lei complementar, após a aprovação da PEC.
O texto proposto pelo relator no Senado prevê ainda uma “trava” para a cobrança dos impostos sobre consumo – um limite que não poderá ser ultrapassado no futuro.
Esse limite será a carga tributária como proporção do PIB (Produto Interno Bruto), na média para o período de 2012 a 2021 – o que seria equivalente a 12,5% do PIB, segundo a Secretaria Extraordinária de Reforma Tributária do Ministério da Fazenda.
Críticos a esse ponto argumentam, porém, que a trava impedirá que, em momentos de crise, o governo promova aumentos temporários de arrecadação.
2. ‘Imposto do pecado’
O Imposto Seletivo, também conhecido como “imposto do pecado”, será uma espécie de sobretaxa que incidirá sobre a produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
Entre esses produtos estão, por exemplo, cigarros e bebidas alcoólicas.
O Imposto Seletivo será de competência federal, com arrecadação dividida com os demais entes da federação.
Originalmente, o Imposto Seletivo também seria usado para manter a competitividade da Zona Franca de Manaus, mas o relator da reforma no Senado propôs a criação de uma nova Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico) para essa finalidade.
Se aprovada, a nova Cide recairá “sobre a importação, produção ou comercialização de bens que tenham industrialização incentivada na Zona Franca de Manaus”, como uma forma de manter a vantagem do polo industrial.
A Zona Franca e o Simples (sistema de tributação simplificada para empresas de pequeno porte) devem continuar como exceções ao sistema, mantendo suas regras atuais – o que é criticado por alguns especialistas, que avaliam os regimes tributários especiais como ineficientes.
3. Cesta básica e cashback
A reforma tributária prevê ainda a criação de uma Cesta Básica Nacional de Alimentos, cujos itens – como arroz, feijão, entre outros – serão isentos de impostos.
Os produtos da cesta serão definidos por lei complementar, que deverá levar em conta a diversidade regional e cultural da alimentação do país.
Haverá ainda uma cesta “estendida” com outros produtos, como carnes e itens de higiene pessoal e limpeza, que terão um desconto de 60% nos tributos para consumidores de baixa renda.
Esse desconto será concedido através da devolução de impostos, chamada de cashback.
A população mais pobre também deve ter direito ao cashback para o imposto cobrado na conta de luz e no gás de cozinha, pela proposta do relator no Senado.
A manutenção da desoneração de parte da cesta básica na reforma tributária é criticada por alguns especialistas.
Eles argumentam que a isenção de impostos reduz a arrecadação do governo e beneficia indistintamente ricos e pobres. Segundo esses analistas, a devolução de impostos é uma política mais barata e mais eficiente para reduzir a injustiça tributária.
Originalmente, a proposta de reforma do governo previa a reoneração da cesta básica e o cashback aos mais pobres. O Congresso, no entanto, optou por um modelo intermediário, com a isenção sendo mantida para alguns itens básicos e o cashback aos mais pobres na cesta “estendida”.
4. Profissionais liberais e outras exceções
Uma novidade introduzida na reforma tributária pelo Senado é a criação de uma tributação específica para serviços prestados por profissionais liberais, como advogados, engenheiros e contadores, equivalente a 70% do valor da alíquota geral.
De última hora, o relator da reforma aceitou ainda exceções que beneficiam bancos, taxistas, clubes de futebol e a indústria automotiva, ampliando a lista de setores privilegiados por alíquotas diferenciadas. A proposta aprovada na Câmara já incluía segmentos como educação, saúde, instrumentos e equipamentos médicos, medicamentos e itens de saúde menstrual, serviços de transporte coletivo, produtos e insumos agropecuários, atividades artísticas e culturais, entre outros.
O problema das exceções é que, como a reforma pretende ser neutra do ponto de vista da arrecadação de impostos – isto é, a expectativa do governo é continuar arrecadando proporcionalmente o mesmo que arrecada atualmente –, os descontos dados a setores específicos precisam ser compensados com uma alíquota geral maior para todos os demais produtos e serviços.
Em agosto, o Ministério da Fazenda publicou um estudo estimando que a alíquota-padrão do IVA ficaria entre 25,45% e 27%.
No início de novembro, o ministro Fernando Haddad estimou que, com as novas concessões incluídas pelo relator no projeto do Senado, a alíquota poderia chegar a 27,5%, uma das mais altas do mundo. Esse cálculo foi feito antes das exceções de última hora incluídas por Eduardo Braga (MDB-AM), relator da reforma no Senado.
“É a festa da cocada esse negócio das exceções. A alíquota de referência vai ficar mais alta ainda, com as exceções sendo reforçadas”, disse Felipe Salto, economista-chefe e sócio da gestora de investimentos Warren Rena, em entrevista ao jornal O Globo ao fim de outubro.
Braga reconheceu na terça-feira, durante a votação do texto na CCJ, que a reforma que seguiria para o plenário do Senado não era a ideal.
“O relatório não é uma obra de arte perfeita, mas, na democracia, é a construção do possível”, disse Braga. “Essa é a primeira reforma tributária que o Brasil constrói em um regime democrático, o que é muito difícil”, completou o senador.
5. Tempo de transição
Segundo a proposta de reforma tributária, o período de transição para unificação dos tributos vai durar sete anos, entre 2026 e 2032.
A partir de 2033, os impostos atuais serão extintos. A transição foi prevista para não haver prejuízo de arrecadação para Estados e municípios.
Pelo cronograma proposto, em 2026, haverá uma alíquota teste de 0,9% para a CBS (IVA federal) e de 0,1% para IBS (IVA compartilhado entre Estados e municípios).
Em 2027, PIS e Cofins deixam de existir e a CBS será totalmente implementada. A alíquota do IBS permanece com 0,1%.
Entre 2029 e 2032, deve haver uma redução paulatina das alíquotas do ICMS e do ISS e elevação gradual do IBS, até a vigência integral do novo modelo em 2033.
Já a transição da cobrança de impostos da origem para o destino deve acontecer em 50 anos, de 2029 até 2078.
Esse longo período de transição divide opiniões entre economistas.
Para Samuel Pessôa, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e chefe de pesquisa econômica do Julius Baer Family Office, a separação entre as duas transições – da unificação de impostos e da migração da origem para o destino – é o “Ovo de Colombo” da reforma.
“Esta reforma vai mudar muito, para muito melhor, a estrutura tributária. Mas ela mexe na estrutura federativa, em quem recebe e quem deixa de receber. Ela não é neutra do ponto de vista dos Estados”, disse Pessôa, em entrevista à BBC News Brasil em julho.
“Então a ideia, ao separar as duas transições, é dar tempo – muito tempo – para os Estados se adaptarem às novas estruturas de recebimento e também dar tempo para os efeitos benéficos da reforma virarem crescimento econômico.”
Já Salto, da Warren Rena, acredita que o longo período de transição para a unificação de impostos pode significar que a guerra fiscal não tenha fim, prejudicando um dos objetivos da reforma.
Pela proposta da reforma, o IBS será instituído com alíquota de 0,1% em 2026. Até 2028, o novo imposto vai conviver com o ICMS e o ISS sem mudança de alíquotas nos tributos antigos.
A partir de 2029, os impostos antigos começam a ser reduzidos, em 10% ao ano, até 2032. Assim, ao final de 2032, o ICMS e o ISS terão alíquotas equivalentes a 60% das atuais.
“Para que [a tributação] migre para o destino, nós temos que acreditar que não vai haver pressão nenhuma para que esses 60% de ICMS não continuem vigorando além de 2032. Ou seja, que da noite pro dia esse ICMS de 60% vá passar a zero”, disse Salto à BBC em julho.
“Isso é um risco porque, ao manter uma alíquota grande para um imposto ruim que enseja benefícios fiscais – o que não é proibido pela PEC –, você pode ensejar a concessão de novos incentivos tributários. Aí há o risco de não termos a migração para o destino nem em uma década.”
Fonte: BBC News | Brasil
Fotografia: REUTERS