Mariana Sanches
Enviada da BBC News Brasil a Havana
Às vésperas de completar dez anos do início de sua operação, a Zona Especial do Porto de Mariel está ao menos 50% vazia. É o que afirmou à BBC News Brasil a diretora-geral da área de 465 km2, Ana Teresa Igarza Martínez.
Com capacidade para mais de cem empresas, apenas 44 estão instaladas ali e atuando em 100% de sua capacidade. Outras 20, estariam em diferentes etapas do processo de implantação.
Projetado para ancorar navios do tipo New Panamax, que transporta até 12,5 mil contêineres de 6 metros de comprimento por viagem, o Porto de Mariel jamais recebeu uma embarcação desta envergadura em mais de nove anos de operação.
Historicamente um ponto de onde milhares de cubanos se lançaram ao mar em todo tipo de barcos e botes para tentar escapar do regime comunista e chegar aos Estados Unidos, Mariel se converteu na maior obra de infraestrutura da história de Cuba nos anos 2010.
Sua construção, feita pela empreiteira brasileira Odebrecht, contou com o financiamento de US$ 638 milhões do BNDES. Em plena capacidade operacional, o local prometia funcionar como um motor capitalista a sustentar o regime comunista cubano. Mas até hoje o complexo portuário de Mariel segue sendo uma promessa jamais inteiramente realizada.
‘Mais do que um amigo, um irmão’
Agora, com o retorno ao poder do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem o governo cubano credita a viabilização da obra, Cuba estabeleceu a atração de empresários brasileiros para a zona especial de desenvolvimento de Mariel como uma estratégia primordial.
Criada nos moldes das Zonas Econômicas Especiais da China, as ZEEs, a zona de Mariel prevê incentivos fiscais (como impostos zerados sobre mão de obra e sobre a produção nos dez primeiros anos), facilitações de infraestrutura, como o fornecimento de água e energia, e acesso fácil aos mercados do Caribe.
Em 2016, no auge do entusiasmo com o empreendimento, havia lista de centenas de empresas interessadas em se instalar ali graças à proximidade com o mercado consumidor americano. Naquele período, até mesmo o então presidente dos EUA Barack Obama autorizou a instalação de uma planta em Mariel de uma fábrica de tratores.
Boa parte do entusiasmo se reverteu depois que a administração de Donald Trump voltou a apertar os torniquetes das sanções à Cuba. Sem poder produzir visando o mercado americano, boa parte das empresas – incluindo as brasileiras- desistiu da instalação em Mariel.
“Sempre tratamos o Brasil como prioridade”, diz Martínez. Segundo ela, no entanto, na esteira dos processos políticos que retiraram Dilma Rousseff do poder e, mais tarde, com a eleição presidencial de Jair Bolsonaro, tanto os políticos quanto a imprensa brasileira se tornaram “agressivos” à Cuba. Tempos que ela acredita estarem superados.
Nesta semana, dois funcionários da Zona especial de Mariel desembarcaram em São Paulo, onde passarão alguns dias promovendo o Porto a empresários, especialmente os do setor agro-industrial, alimentar, petroleiro e energético.
Novos financiamentos do BNDES?
“Para o brasileiro, a decisão de investir agora se torna muito mais viável. Lembremos que há mais de cinco anos o BNDES não nos renova um empréstimo, que os financiamentos foram fechados, que os investimentos e as políticas mudaram, que houve maior controle sobre as saídas de capitais do Brasil e isso afeta a empresário brasileiro”, argumenta Martínez.
De fato, desde o fim do governo Dilma, não houve renovação de empréstimos do banco de desenvolvimento brasileiro ao governo cubano.
E a partir do segundo semestre de 2018, Cuba deixou de pagar as parcelas do financiamento conforme os contratos assinados entre 2009 e 2013.
Por isso, a ilha foi incorporada a uma lista de inadimplentes, condição na qual o Conselho Cadastral do BNDES, responsável pela aprovação de crédito, tem por regra negar qualquer tipo de novo empréstimo.
Segundo informado pelo BNDES à BBC News Brasil, a dívida atualizada de Cuba com o banco, contados os juros, chega a US$ 520 milhões – o equivalente a mais de R$ 2,5 bilhões.
Questionada sobre as razões da inadimplência cubana, Martínez diz que o assunto foge ao seu escopo de atuação, mas demonstra esperança de que o banco brasileiro possa se tornar novamente uma fonte de recursos para o país.
“Agora estamos em um momento melhor, com um amigo (Lula), até porque além de amigo ele é um irmão, alguém de quem gostamos, e há possibilidades dos empresários brasileiros retornarem a Cuba sem serem pressionados pelo governo em contrário. Acho que estamos no momento certo para fazer essa promoção, por isso nos esforçamos tanto no trabalho”, diz Martínez, enquanto avança os slides de uma apresentação de Power Point em língua portuguesa sobre o complexo de Mariel.
Segundo ela, desde as eleições brasileiras de 2022, já repetiu a apresentação ao menos uma dezena de empresários brasileiros. Na semana passada, foi a vez do presidente da Apex, Jorge Viana, conhecer os slides. Questionado sobre qual o potencial de negócios e que empresários brasileiros estariam interessados em vir a Cuba, Viana não respondeu à BBC News Brasil até a publicação desta reportagem. Carlos Gabas, secretário-executivo do Consórcio Nordeste, foi outra das autoridades brasileiras que esteve recentemente em reunião com a diretora de Mariel.
Martínez se nega a revelar os nomes dos empresários que disse ter recebido. Segundo ela, o embargo americano, que proíbe, por exemplo, que um navio atraque em qualquer porto nos EUA dentro de um período de 6 meses após atracar em Cuba, também inclui medidas de perseguição concorrencial às empresas que se instalam na ilha.
Por isso, uma das cláusulas do contrato das empresas que se incorporam à zona de Mariel é o sigilo. O complexo não divulga as empresas que o compõem. Mas sabe-se que há ali a multinacional Unilever, a Nescor (associação da Nestlé com uma estatal cubana) e a espanhola Profood. O complexo divulga as nacionalidades das empresas que ali operam: são 17 espanholas, cinco vietnamitas, três italianas, três mexicanas.
E somente uma, a BrasCuba, tem origem brasileira. Trata-se de uma associação entre a empresa de cigarros Souza Cruz e uma estatal cubana, a Tabacuba. Mas a Souza Cruz já atua em Cuba há 28 anos e apenas se transferiu para dentro da zona especial. Na prática, embora algumas companhias do Brasil tenham iniciado o processo de implantação, nenhuma nova empresa do país se instalou em Cuba após a conclusão do porto.
Nos dias que antecederam a chegada de Lula ao país, nesta sexta, 16/9, veículos de imprensa cubanos ou hispânicos com circulação em Cuba, como a Rádio Havana e o Infobae, retrataram a expectativa de que a visita do presidente brasileiro represente uma nova leva de recursos a Cuba. Não há empresários na comitiva que parte hoje de Brasília.
Mas assessores de Lula disseram à BBC News Brasil que o encontro com o líder cubano Miguel Diaz-Canel deve inaugurar uma renegociação da dívida com o BNDES. Não se trata de um perdão, mas de um “reescalonamento” para adequar o regime de pagamento a algo que Cuba possa cumprir.
O país vive sua maior crise econômica desde a revolução comunista, de 1959, resultado do recrudescimento do embargo americano, da pandemia de COVID que derrubou o turismo na ilha, e da inflação de grãos e energia, que Cuba importa massivamente.
“Aos cubanos interessa a renegociação e a retomada de pagamentos até para que possam pegar novos financiamentos”, disse à BBC News Brasil um diplomata brasileiro com conhecimento das negociações.
Há dúvidas se uma mera formalização de renegociação entre os presidentes de Brasil e Cuba seria o suficiente para que o BNDES retirasse o governo cubano da condição de inadimplência e reabrisse linhas de crédito ao país.
A BBC News Brasil consultou oficialmente o banco sobre isso, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Fonte: BBC News | Brasil
Fotografia: ENRIQUE DE LA OSA/AFP VIA GETTY IMAGES