Thais Carrança – @tcarran
Da BBC News Brasil em São Paulo
O preço dos combustíveis se tornou um dos primeiros grandes impasses do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Em aberto, estão questões como o futuro dos impostos sobre a gasolina e o etanol — reduzidos por Jair Bolsonaro (PL) em 2022, durante sua tentativa de reeleição, e cuja desoneração foi mantida por 60 dias pelo novo governo —, a política de preços da Petrobras e como irá prosseguir a venda das refinarias da estatal, determinada em acordo entre a empresa e o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica, órgão responsável pela defesa da livre concorrência).
O mercado financeiro e o setor energético aguardam essas definições pelo governo com apreensão, diante do histórico de controle de preços durante o governo Dilma Rousseff e da perspectiva estatizante do PT com relação ao setor petrolífero.
Para a população em geral, o tema também é importante, já que o preço dos combustíveis tem impacto relevante sobre a inflação — o diesel afeta os custos do transporte público e de diversas cadeias produtivas devido ao custo de frete, e a gasolina e o etanol pesam no bolso das famílias que utilizam veículos particulares, além dos motoristas autônomos.
A questão também é politicamente sensível, diante das ameaças constantes de paralisação de caminhoneiros — uma questão ainda mais delicada após os atos de vandalismo registrados em Brasília por apoiadores do ex-presidente Bolsonaro.
Entenda por que o preço dos combustíveis se tornou um impasse para Lula no início do governo e o que pode vir pela frente.
Gestões petistas e o preço dos combustíveis
Para entender por que o preço dos combustíveis é um tema tão delicado para o novo governo, é preciso voltar às gestões petistas passadas. Particularmente, aos governos de Dilma Rousseff.
Para conter a inflação, Dilma controlou alguns preços regulados pela União — os chamados preços administrados —, como energia elétrica, combustíveis e tarifas de transporte público.
Um estudo da UFRJ de 2015 estimou em R$ 98 bilhões as perdas de receita da Petrobras com a venda de derivados a preço inferior ao de referência internacional entre 2011 e 2014.
“Essa política aumentou a dívida e comprometeu a capacidade de investimento da Petrobras”, lembra Heitor Paiva, analista de energia e macroeconomia da HedgePoint Global Markets.
“Isso foi mal visto pelo mercado financeiro porque onerou também os investidores da empresa, daí a desconfiança em relação à condução atual da questão dos combustíveis.”
Em 2017, a Organização Mundial do Comércio (OMC) chegou a apontar a Petrobras como a empresa petrolífera mais endividada do mundo, com uma dívida à época de US$ 125 bilhões — R$ 387 bilhões ao câmbio de então.
Além dos efeitos para a empresa, a política de controle de preços tem outros impactos negativos, diz Paiva.
O primeiro deles é que a venda de combustíveis abaixo da paridade internacional inibe a importação de derivados por outras empresas — um problema relevante, já que o país importa entre 25% e 30% do diesel consumido internamente.
Outra questão é que, quando há paridade internacional, o preço acaba servindo como um sinal para os consumidores sobre as condições de oferta — ou seja, quando há menos produto disponível, o preço sobe e vice-versa. Sem essa referência e com a dificuldade de importação privada, o controle de preços pode levar à escassez de combustíveis no mercado interno.
“A política de controle de preços não ajuda a controlar a inflação. Ela represa a inflação por um momento, mas isso causa desequilíbrio e, quando o reajuste acaba sendo feito, a inflação vem com força”, diz Rafaela Vitória, economista-chefe do Banco Inter.
“Isso também mantém as expectativas de inflação em alta, porque os agentes esperam que em algum momento o reajuste virá. Então não adianta controlar artificialmente a inflação corrente, porque as expectativas continuam contaminadas.”
Os combustíveis sob Temer e Bolsonaro
Em resposta a esses problemas, a Petrobras passou a adotar em 2016 o chamado preço de paridade internacional (PPI). Nesse modelo, o preço dos combustíveis no mercado interno varia de acordo com a cotação internacional do barril do petróleo e do câmbio.
Também no governo de Michel Temer (MDB), a empresa iniciou um programa de desinvestimento do setor de refino, com o objetivo de se concentrar na exploração do petróleo.
“A paridade internacional ainda é a melhor solução”, acredita Vitória, do Inter. “Ela traz volatilidade para o consumidor, mas por outro lado traz uma transparência muito grande.”
Já no governo Temer, essa volatilidade teve um desdobramento dramático: a greve de caminhoneiros de 2018, que durou 10 dias e gerou prejuízos bilionários à economia.
No governo Bolsonaro, foram mantidas as políticas de paridade internacional e do desinvestimento no refino. Mas, no meio do caminho, houve a crise energética provocada pela guerra na Ucrânia.
Pressionado pela alta dos combustíveis em ano de eleição, Bolsonaro interveio nos preços desonerando os impostos federais sobre combustíveis (PIS, Cofins e Cide) e aprovando uma lei que passou a considerar esses produtos como itens essenciais, o que limitou a cobrança de ICMS pelos Estados a uma faixa de 17% a 18%.
A Petrobras também passou a reajustar os combustíveis com menos frequência no período pré-eleitoral.
O corte de tributos ajudou a conter a inflação brasileira, de 10% no acumulado de 12 meses até julho de 2022, para 5,8% em dezembro. Mas deixou um grande problema para o novo governo, já que a isenção de impostos federais tinha validade apenas até 31 de dezembro. Assim, se nada fosse feito, o terceiro mandato de Lula iria começar já com aumento dos combustíveis.
Além dessa questão dos impostos, durante a campanha eleitoral, Lula deu diversas declarações defendendo “abrasileirar” o preço dos combustíveis. Isso criou um temor no mercado de que a intenção do petista seria acabar com o PPI e retomar investimentos em refino.
“A Petrobras é uma empresa brasileira, o petróleo está no solo brasileiro, as plataformas somos nós que fazemos. Por que a gente tem que cobrar em dólar? Se a gente ganhar as eleições, a gente vai abrasileirar os preços da Petrobras”, disse Lula em peça publicitária de sua campanha.
Impasse no início de mandato
Escolhido para ministro da Fazenda e com a espinhosa missão de reequilibrar as contas públicas brasileiras, Fernando Haddad pediu em dezembro ao governo Bolsonaro que não prorrogasse a desoneração de impostos sobre combustíveis.
A ala política do novo governo, no entanto, avaliou que seria negativo um aumento de combustíveis logo no começo do mandato.
Haddad foi voto vencido e o governo Lula prorrogou a desoneração dos impostos federais sobre álcool e gasolina por 60 dias e sobre o diesel, biodiesel, gás natural e gás de cozinha até 31 de dezembro de 2023.
A derrota de Haddad nessa disputa aumentou a preocupação do mercado com a saúde das contas públicas e gerou dúvidas sobre se ele terá força para fazer o ajuste fiscal necessário para estabilizar a trajetória da dívida brasileira.
“O mercado tinha uma perspectiva de déficit primário na casa de R$ 200 bilhões para o fim de 2023. A partir do momento em que o governo federal confirma que vai continuar com a isenção de tributos federais para o diesel até o fim do ano e para a gasolina até fim de fevereiro, isso tira a possibilidade desse déficit ser menor”, diz Paiva, da HedgePoint.
Além do efeito negativo para o quadro fiscal, a prorrogação da desoneração também mantém as expectativas de inflação elevadas, já que o desequilíbrio das contas públicas afeta o câmbio, o que pesa sobre todos os custos importados do setor produtivo. Além disso, o mercado espera que esse corte de impostos vá ser revertido em algum momento à frente.
Assim, com a prorrogação da desoneração, o governo garante uma inflação menor no curto prazo, mas pode acabar gerando inflação maior à frente.
“Tinha espaço para retomar os impostos neste início de mandato, com a queda dos preços da gasolina. Então há uma herança negativa de um subsídio que é caro para o país, num momento em que vamos gastar mais com Bolsa Família e outros programas”, diz Rafaela Vitória, do Inter.
“Existe uma preocupação do governo com aumento de preços logo no início do mandato, uma preocupação com popularidade. Mas é uma decisão equivocada deixar de ter essa arrecadação quando o próprio governo começa o ano ampliando benefícios.”
As questões que ainda têm de ser respondidas por Lula
Após ganhar tempo com a prorrogação da desoneração da gasolina e do etanol até fevereiro e do diesel e gás de cozinha até dezembro, o terceiro mandato de Lula ainda tem muitas perguntas sem resposta para o mercado de combustíveis.
A primeira delas é o futuro da tributação federal sobre a gasolina e o etanol após 28 de fevereiro.
Outra dúvida é se a gasolina vai perder o caráter de essencialidade, o que poderia elevar a cobrança de ICMS pelos Estados sobre o combustível.
Isso porque, em dezembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) homologou acordo entre Estados, Distrito Federal e União mantendo a essencialidade do diesel, gás natural e gás de cozinha, o que limita a cobrança do ICMS sobre esses itens a faixa entre 17% e 18%. Mas, na ocasião, não houve consenso sobre a essencialidade da gasolina, discussão que deverá ser retomada.
Uma terceira incógnita é qual será a política de preços da Petrobras, o que só deverá ser definido quando o senador Jean Paul Prates (PT) assumir a presidência da empresa.
Prates gerou alívio no mercado ao declarar que a mudança na política de preços de combustíveis não deve envolver nenhum tipo de intervenção direta no mercado.
Ele também afirmou que o cálculo para o reajuste de preços continuará em linha com o mercado internacional — mas não seguirá mais o PPI, implementado durante o governo Temer.
No mercado, segundo o jornal Valor Econômico, há expectativa de que o novo governo possa optar por modelo semelhante ao de projeto de lei (PL 1472/21) aprovado no Senado e relatado por Prates, que prevê a criação de uma banda de preços para os combustíveis regulada pelo Executivo, acompanhada de um Fundo de Estabilização, para mitigar variações bruscas de preço ao consumidor.
“A criação de um fundo, se bem feita e bem planejada, não é uma má ideia, mas ela não resolve o problema de curto prazo”, avalia Vitória, do Inter.
“As bandas talvez funcionem, reduzindo um pouco da volatilidade para o consumidor final, mas o risco é acabar postergando reajustes e onerando a Petrobras em momento de alta de custos. Então precisamos aguardar para ver quais vão ser essas propostas e como isso vai ser debatido dentro da Petrobras. Me parece que há uma resistência também dentro da própria empresa em efetuar mudanças na política de preços, como vimos no governo Bolsonaro.”
Por fim, uma última incógnita é o que acontecerá com as refinarias da empresa.
Em 2019, a estatal e o Cade firmaram um acordo para a venda de oito das 13 refinarias da Petrobras, o que reduziria a participação da companhia no mercado a cerca de 50% — hoje ela detém 98% do mercado, segundo o órgão de defesa da concorrência.
O prazo para o desinvestimento era 2021, mas até agora a Petrobras só conseguiu vender duas refinarias, uma no Amazonas e outra na Bahia. Conforme reportagem da Folha de S.Paulo, se interromper o processo de venda, a empresa poderá ser condenada no Cade por abuso de poder econômico, além de sofrer multa pesada e desgaste para a imagem da companhia.
Assim, conforme o jornal, Prates estaria estudando alternativas. Uma opção seria vender as refinarias, e com o dinheiro arrecadado, construir novas unidades. Isso garantiria o cumprimento do acordo e o aumento dos investimentos no setor, como deseja o governo.
Mas pode causar descontentamento entre os investidores da Petrobras, já que o investimento em refino é caro e implicaria num aumento do endividamento da estatal — e a memória ainda está fresca do tempo em que ela foi a petrolífera mais endividada do mundo e dos investimentos malsucedidos que vieram à tona com a Operação Lava Jato.
Tendência para o preço do petróleo em 2023
Embora a tarefa do governo pela frente seja árdua, o cenário global deve trazer algum alívio para que essas discussões sejam feitas, avalia a economista-chefe do Banco Inter.
“Essa é uma boa notícia”, diz Rafaela Vitória. “Os preços futuros do petróleo estão num patamar bem comportado. Temos uma expectativa de barril a US$ 90, mais alto do que atualmente [o Brent anda próximo dos US$ 80], mas abaixo da média do ano passado, que foi em torno de US$ 100. Então os preços dos combustíveis não deve ser problema para esse ano.”
Heitor Paiva, da HedgePoint, é um pouco mais cauteloso.
“Possivelmente teremos uma recessão no primeiro e segundo trimestres nos países europeus, isso está impactando o mercado de petróleo. Temos o pior início de ano para o petróleo nos últimos 30 anos, com queda expressiva de preços”, diz Paiva.
“Mas, ao mesmo tempo que isso está acontecendo, temos a China voltando para o mercado e a China demanda muito petróleo, então ela pode acabar compensando a queda de demanda no Ocidente, fazendo com que os estoques internacionais fiquem apertados. Então isso pode fazer com que, a partir do verão no hemisfério Norte — junho, julho —, os preços fiquem mais altos. Por isso há analistas que ainda acreditam no petróleo acima de US$ 100.”
O analista destaca ainda a continuidade da guerra na Ucrânia e novos embargos que entrarão em vigor esse ano.
“Nesse cenário, a Petrobras tem que ter em mente que a política de preços dela não pode tirar competitividade de setores que ajudam a trazer produto para o Brasil. Temos um mercado internacional muito volátil e se tivermos uma política interna que atrapalhe os importadores, a oferta pode ficar vulnerável, afetando preços. Então é um momento de sermos racionais.”
Fonte: BBC News | Brasil
Fotografia: MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL