Rupert Wingfield-Hayes
BBC News, Taiwan
O sol de dezembro está esquentando a península de Heng Chun — o estreito pedaço de terra que se lança do extremo sul de Taiwan em direção ao mar das Filipinas.
Um cigarro meio tragado pende do canto da boca de Hsu Keng-jui. Ele faz parte de uma rede de voluntários — a maior parte, veteranos como ele — que acompanham a agora constante presença de navios e aviões chineses pouco além dos limites territoriais de Taiwan.
Com prendedores de plástico, Hsu fixa uma longa antena de rádio a um trilho de aço. Ele então se senta com seus receptores portáteis e começa a rastrear as frequências de rádio de uso militar.
Inicialmente, tudo o que ouvimos é o som ritmado e suave da guarda costeira orientando o tráfego marítimo do sul de Taiwan. Até que surge um tom diferente com sotaque distinto em meio à forte estática. São os sons da marinha chinesa.
A China vem aumentando a pressão em meio à importante corrida presidencial que ocorre na ilha de Taiwan, considerada há muito tempo pelo continente uma província rebelde.
A poucas semanas das eleições, Pequim surge maior do que nunca — frente às urnas e nas fronteiras de Taiwan.
“Nós representamos todo o povo da China”, entoa a voz da marinha chinesa. “A República Popular da China é o único governo legítimo da China e Taiwan é uma parte inseparável da China.”
Enquanto pega outro cigarro, Hsu parece indiferente. “Ouço isso, agora, todos os dias”, ele conta. “É como se eles estivessem lendo um roteiro.”
Outra voz surge nas ondas do rádio. Agora, é o capitão de um rebocador chinês, a apenas cerca de 5 km do litoral de Taiwan.
O capitão foi solicitado a se retirar das águas territoriais de Taiwan, mas ele se recusou. “De que águas territoriais você está falando?”, questiona ele. “Taiwan não tem águas territoriais!”
De repente, Hsu fica furioso. Ele dá um salto, agarra um aparelho portátil e solta uma torrente de ofensas pelas ondas do rádio.
Hsu ainda pragueja enquanto volta a se sentar, até que murmura: “quem ele pensa que é?”
Há décadas, os governos de Pequim e de Taipei mantiveram um acordo informal de não ultrapassar uma linha intermediária que divide o estreito de 177 km que os separa.
Mas, agora, a China vem cruzando esse limite quase diariamente, por mar e pelo ar.
Houve um dia em setembro em que o Exército de Libertação Popular da China enviou mais de 100 aeronaves em direção a Taiwan e 40 delas cruzaram a linha intermediária.
Essa chamada “guerra cinza” pretende “subjugar o inimigo sem combate”, para usar as palavras do lendário estrategista militar chinês Sun Tzu (544 a.C.-496 a.C.), no livro A Arte da Guerra.
Nesse caso, os inimigos são o governo de Taiwan, os que apoiam a separação permanente de Taiwan da China e seus aliados externos nos Estados Unidos e no Japão.
“A China está mandando uma mensagem muito forte para os Estados Unidos e até para o Japão”, explica o almirante da reserva Lee Hsi-Min, ex-comandante das Forças Armadas de Taiwan.
“Ela está dizendo a eles (americanos e japoneses) que Taiwan é parte da China. Que esta região é nossa para fazermos o que quisermos aqui. Ao mesmo tempo, ela pretende assustar o povo taiwanês e fazer com que eles se entreguem.”
Taiwan deve eleger um novo presidente no dia 13 de janeiro e o objetivo principal da China é enfraquecer o apoio ao partido do atual governo, o Partido Progressista Democrático (PPD). A presidente da ilha, Tsai Ing-wen, irá deixar o poder depois de oito anos.
Pequim e as urnas — de novo
A presidente Tsai defendeu a soberania de Taiwan de forma cautelosa, mas firme.
Ela é profundamente rejeitada por Pequim. Mas, na visão do continente, o homem que concorre para sucedê-la — o atual vice-presidente William Lai — é muito pior.
Embora declare que não irá fazer nada para alterar a situação atual, Lai é considerado pela China um “divisionista” linha-dura, defensor da independência formal de Taiwan.
A mensagem de Pequim para os eleitores de Taiwan é que votar em William Lai é votar na guerra. E é também a mensagem do principal partido de oposição, o nacionalista Kuomintang (KMT).
Seu candidato Hou Yu-ih afirmou aos seus apoiadores, em um recente comício, que “toda a nossa geração irá perder tudo por que lutamos ao longo da vida [se Lai vencer]”.
Mas os simpatizantes do PPD não parecem assustados. Eles já viram esse filme antes, a cada quatro anos, desde a primeira eleição presidencial de Taiwan em 1996.
Recentemente, cerca de 60 mil simpatizantes do PPD se reuniram em uma praça no centro da capital Taipei, em uma chuvosa tarde de domingo, para ver Lai e sua parceira de campanha.
Quando Tsai subiu ao palco, a multidão se manifestou, saudando a presidente e acenando com pequenas bandeiras verdes do PPD. Entre elas, havia também muitas bandeiras arco-íris do orgulho gay.
Tsai é adorada pela comunidade LGBTQIA+ de Taiwan, por tornar a ilha o primeiro lugar da Ásia a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Eleições democráticas à parte, este é mais um ponto que separa Taiwan da China. E é uma das muitas razões que levam os simpatizantes do PPD a afirmar categoricamente que a ilha nunca fará parte da República Popular da China.
“Estou muito preocupada [com as ameaças chinesas], mas não tenho medo”, afirma Frederika Chou. “Porque vou me voluntariar para o exército e lutar se eles, algum dia, tentarem invadir nosso belo país.”
“Algum dia, poderemos ter guerra, mas não tenho medo porque sou taiwanesa e preciso proteger meu país”, afirma Abby Ding, de 27 anos. Ela veio com seu pai de Tainan, no sul da ilha, para assistir ao comício.
Pequim está longe de ser a única questão importante na eleição. A inflação, os altos custos de moradia e a redução das oportunidades vêm causando insatisfação com o PPD. Essa situação está levando eleitores jovens para os braços do Partido do Povo de Taiwan e seu candidato populista, Ko Wen-je.
Ex-simpatizante do PPD, Ko agora se posiciona como terceira opção entre seus principais adversários — e afirma que pode negociar melhores relações com Pequim.
Embora a “reunificação” sempre fosse uma possibilidade, as reivindicações da China agora ganharam mais urgência, especialmente com as repetidas promessas do líder chinês Xi Jinping de retomar a ilha, conforme for necessário.
A questão de até que ponto Taiwan deve se preparar para os combates divide os principais partidos da ilha.
O governo atual do PPD realizou grandes investimentos em novos submarinos de fabricação doméstica e adquiriu vários jatos de combate F16 e mísseis modernos dos Estados Unidos. Ele reinstaurou o serviço militar obrigatório com 12 meses de duração e afirma que irá fazer mais se permanecer no poder após as eleições.
Já o KMT é muito mais ambivalente. Seu candidato à vice-presidência, Jaw Shaw Kong, chamou o programa de construção de submarinos de projeto de vaidade e imenso desperdício de dinheiro.
A família de Jaw é da China, e ele é considerado, há muito tempo, uma das vozes mais próximas de Pequim na política taiwanesa.
Jaw afirma que a única forma de garantir a paz para Taiwan é conversar com Pequim, garantindo ao presidente Xi que a ilha não pretende declarar independência e que, um dia, Taiwan e a China podem e devem se unificar.
Essa opinião está longe de ser impopular em Taiwan. As relações da ilha com a China são profundas. Elas vão dos laços familiares até o comércio e estão entrelaçadas com questões complicadas sobre o passado e a identidade nacional.
É uma questão que, muitas vezes, opõe uma geração mais velha, com fortes laços com o continente, contra os jovens que cresceram em uma sociedade aberta e democrática.
Ninguém irá negar a ameaça militar da China, mas eles estão divididos sobre qual a melhor forma de detê-la. E, enquanto os principais partidos discutem, a força aérea de Taiwan é lenta e constantemente extenuada pela pressão constante dos chineses.
No início de uma manhã de dezembro, um grupo de jatos de combate Mirage 2000 saiu de sua base na costa oeste da ilha e voou com estrondo pelo estreito de Taiwan.
A base abriga os 45 jatos do esquadrão de reação rápida de Taiwan. Sua missão é confrontar os aviões chineses que sondam, todos os dias, os limites do espaço aéreo taiwanês.
Os jatos foram comprados da França no início dos anos 1990. Agora, eles estão ficando velhos.
Para o almirante da reserva Lee, a China está desgastando as forças aéreas taiwanesas. E eles podem sentir o impacto porque a manutenção aumentou e “está realmente afetando nossa capacidade”, segundo ele.
A China pode voar o quanto quiser. O Exército de Libertação Popular tem mais de 2 mil jatos de combate e está construindo muitos outros. Já Taiwan tem menos de 300, muitos deles com mais de 25 anos.
Especialistas militares afirmam que o desgaste da frota Mirage é tão grande e seu custo de manutenção é tão proibitivo que eles silenciosamente deixaram de sair para interceptar todas as intrusões chinesas, restringindo-se apenas às mais ameaçadoras.
Jogo de longo prazo
As últimas pesquisas indicam que Lai e o PPD são favoritos para a vitória nas eleições de janeiro, mas por pequena margem. Este seria o terceiro mandato presidencial consecutivo do PPD, algo sem precedentes e um tapa no rosto de Pequim.
Mas o PPD provavelmente irá conseguir menos de 40% dos votos. Ou seja, ainda há muito jogo pela frente.
Taiwan tem imprensa livre e internet aberta. Ou seja, suas portas estão escancaradas para a máquina de propaganda chinesa poder se dirigir aos 60% dos eleitores que não irão votar no PPD. Eles também irão votar em uma nova legislatura, que poderá ser vencida pelo KMT.
O principal alvo da propaganda chinesa, há anos, tem sido a população mais idosa de Taiwan, particularmente os que possuem laços familiares com o continente. Estas pessoas tradicionalmente votam no KMT.
“Ela tem sido muito eficaz”, afirma o acadêmico e ativista político Puma Shen, que estuda as operações de influência chinesa em todo o mundo há anos.
“Se você observar a história, os simpatizantes do KMT costumavam ser fortes opositores ao Partido Comunista Chinês. Mas, agora, eles passaram a ser contrários à independência de Taiwan”, explica ele. “Eles agora acreditam que as pessoas que apoiam a independência de Taiwan são as que podem dar início à guerra.”
Um grupo de eleitores que antes considerava o Partido Comunista Chinês como inimigo agora acredita que o PPD é o real motivo de risco.
Essa não é uma visão rara de se encontrar em Taiwan.
Os moradores mais idosos de Taipei depreciam a presidente Tsai e seu partido, afirmando que eles são um “bando de desordeiros”.
Mas Pequim sabe que a chave para o sucesso será atrair os eleitores jovens, que não têm filiação partidária e estão insatisfeitos com os dois partidos tradicionais. Eles agora são o alvo da propaganda chinesa pelo TikTok e pelo YouTube. A China tem mais de 200 canais carregando vídeos todos os dias.
“Eles são muito bons para descobrir os interesses dos jovens taiwaneses e criar conteúdo para atraí-los”, afirma Shen. É o que ele chama de “pavimentar a estrada”. Quando o público está estabelecido e se desenvolve a confiança, são introduzidas as mensagens pró-China.
As pesquisas de Shen demonstraram aumento dos grupos de jovens taiwaneses que não são favoráveis à China, mas se tornaram cada vez mais contrários aos Estados Unidos e ao Japão.
Essas operações de influência provavelmente não irão resultar em uma súbita aceitação da China, mas Pequim está jogando a longo prazo.
“Esta eleição é apenas um objetivo de curto prazo para eles”, explica Shen. “A estratégia maior, o verdadeiro jogo final, é fazer com que Taiwan assine um acordo de paz sem a necessidade de lutar.”
Fonte: BBC News | Brasil
Fotografia: GETTY IMAGES