Rafael Barifouse
Da BBC News Brasil em São Paulo
Um projeto de emenda à Constituição Federal (PEC) reacendeu o debate sobre a possibilidade de cobrança de mensalidades em universidades públicas brasileiras.
A PEC 206 foi apresentada pelo deputado federal General Peternelli (União-SP) e estava na pauta de terça-feira (24/5) da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, onde poderia ser votada. Mas foi retirada de última hora, porque o relator do projeto, o deputado Kim Kataguiri (União-SP), está de licença médica. Kataguiri se manifestou a favor da proposta em seu relatório.
Mesmo sem a PEC na pauta, integrantes de movimentos sociais ocuparam o plenário da comissão enquanto deputados do PT, PSOL, PCdoB e PSD usaram suas falas para criticar a medida e acusaram de ser uma tentativa de privatizar o ensino superior público do país.
O deputado Peternelli também falou na sessão e justificou sua proposta.
“Quem paga mais imposto é o pobre, é a classe assalariada, e quem paga a universidade pública? É o dinheiro público. Essa pessoa humilde pagou para financiar o curso de Medicina do cara que vai estudar com carro Mercedes. É inconcebível termos uma oportunidade de dividirmos recursos e não querermos nem ouvir a proposta.”
Ao fim do debate, foi aprovada a realização de uma audiência pública sobre a PEC antes que ela seja votada. Ainda não há data para a audiência.
À BBC News Brasil, Peternelli negou que sua proposta busque privatizar as universidades públicas e disse que o objetivo é corrigir distorções do ensino superior e obter mais recursos para melhorar as instituições.
No entanto, especialistas ouvidos pela reportagem dizem que a medida não resolverá a desigualdade social nas universidades públicas, pode dificultar o acesso de pessoas mais pobres a estes cursos e abre caminho para que o financiamento das instituições seja reduzido no futuro.
O que diz o projeto?
A PEC 206 faz referência um relatório do Banco Mundial de 2017 que recomendou o fim de gratuidade nas universidades públicas do país e a um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que apontou em 2018 que, em 20 de 29 países estudados, havia cobranças em universidades públicas.
O projeto afirma que, no Brasil, “a maioria dos estudantes dessas universidades acaba sendo oriunda de escolas particulares e poderiam pagar a mensalidade”. “O gasto público nessas universidades é desigual e favorece os mais ricos”, diz o texto da PEC.
“A gratuidade generalizada, que não considera a renda, gera distorções gravíssimas, fazendo com que os estudantes ricos – que obviamente tiveram uma formação mais sólida na educação básica – ocupem as vagas disponíveis no vestibular em detrimento da população mais carente, justamente a que mais precisa da formação superior, para mudar sua história de vida.
A proposta estabelece que a Constituição passaria a prever que “as instituições públicas de ensino superior devem cobrar mensalidades, cujos recursos devem ser geridos para o próprio custeio, garantindo-se a gratuidade àqueles que não tiverem recursos suficientes, mediante comissão de avaliação da própria instituição e respeitados os valores mínimo e máximo definidos pelo órgão ministerial do Poder Executivo”.
O texto da PEC traz como sugestão que o valor máximo da mensalidade seja o equivalente a 50% do preço médio cobrado pelos cursos particulares dentro de uma determinada região. Mas seu autor afirma que os reitores teriam autonomia para determinar os valores e critérios usados para cobrar as mensalidades.
De acordo com Peternelli, a comissão que avaliaria a condição econômica de cada estudante seria formada por alunos, professores e assistentes sociais. Seria então tomada a decisão sobre a concessão de bolsas, que variariam entre 30% e 100% do valor da mensalidade, para os alunos mais pobres.
“Quem pode paga, quem não pode não paga”, diz Peternelli. “Acho isso natural. É justo que os mais humildes paguem a faculdade dos mais ricos?”
O relator da proposta reforçou esse argumento em nota enviada à imprensa, ao dizer que os mais pobres são “reféns de escolas públicas subfinanciadas e pagam pela universidade pública frequentada, em regra, por pessoas com renda superior”.
Kim Kataguiri reafirmou ainda que a PEC prevê que a gratuidade será garantida a quem não tiver condições financeiras suficientes e negou, assim como Peternelli, que a medida seja uma privatização da universidade pública.
O autor da PEC afirma que o texto institui mensalidades, mas não altera outros elementos básicos de uma instituição desse tipo. “Não tem nada a ver. A universidade privada tem o componente do lucro, não depende de concurso público para contratar professor, o reitor é escolhido pelo dono e não pela coletividade”, diz Peternelli.
“Esse dinheiro vai ser investido em ciência, pesquisa e tecnologia, vai ser tudo revertido para melhorar as condições das universidades públicas.”
O que dizem os especialistas?
No entanto, a posição de Peternelli não se reflete nas opiniões de especialistas ouvidos pela reportagem.
Cláudia Costim, diretora do Centro de Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz não ser contra a cobrança de mensalidades, especialmente na pós-graduação, e afirma que esse assunto poderia ser revisitado no futuro.
Mas o considera inoportuno agora, em meio à crise que o país atravessa, por ser uma proposta “absolutamente desvinculada de qualquer tipo de solução para os problemas emergenciais e estrurais da educação no país”.
Para além do momento imediato, Costim avalia que a cobrança de mensalidades poderia se tornar uma nova barreira de acesso para estudantes de baixa renda.
“O efeito disso, ao meu ver, seria o aprofundamento da crise do ensino superior, porque estaríamos correndo o risco de cobrar de quem não pode pagar ou de endividar famílias que teriam que contrair empréstimos”, diz.
Outra consequência a médio prazo poderia ser uma redução dos recursos públicos destinados às universidades. “É verdade que há países que cobram mensalidades em universidades públicas, mas em nenhum deles é a principal fonte de financiamento”, explica Costim.
“Corremos o risco, ao fantasiar que vai ter financiamento importante por meio de mensalidades, de os governos se desvencilharem do seu papel de financiar as universidades, porque sofrem pressão de cortar gastos, e os investimentos em Educação e Ciência não geram resultado no curto prazo e são mais difíceis do político capitalizar.”
Embora o autor da PEC afirme que a cobrança de mensalidades seria um recurso extra e não levaria a cortes de orçamento, Costim afirma que “não dá para colocar na Constituição que não vai ter cortes”. “Seria muito fácil no futuro alguém dizer que a universidade tem outras fontes de financiamento e cortar”.
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), afirma que a argumentação apresentada pela PEC 206 para a cobrança de mensalidades está “desatualizada”.
“A ideia de cobrar poderia fazer sentido no passado, mas não faz mais porque a Lei de Cotas mudou o perfil da universidade. Não é mais verdade que não tem negros e pobres, porque hoje metade das vagas são reservadas a quem vem de escola pública”, afirma Ribeiro, que foi ministro da Educação no governo de Dilma Rousseff.
Uma pesquisa de 2019 aponta que, hoje, 70,2% dos estudantes das universidades federais é de baixa renda. O levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) apontou que esses estudantes têm uma renda familiar mensal de até 1,5 salário mínimo per capita.
Ribeiro considera ainda que seria difícil instaurar um sistema de avaliação capaz de dar conta da complexidade das diferentes situações econômicas dos estudantes.
“Imagina uma pessoa de 25 anos que mora com os pais, qual renda vai ser levada em consideração: a dela ou da família? E se uma pessoa de 18 anos é independente e mora sozinha? E uma pessoa de 40 anos que mora com o pai e recebe uma mesada?”, afirma.
“Sem falar que vai ser preciso criar todo um sistema burocrático para colocar tudo isso em prática e obter um ganho muito pequeno. Não vale a pena.”
Ribeiro defende que uma forma melhor de obter mais recursos para o ensino superior seria cobrar mais imposto de renda de quem é mais rico e passar a tributar lucros e dividendos distribuídos por empresas, por exemplo.
“A solução está na tributação e não em transformar a educação em mercadoria”, diz o presidente da SBPC.
Compromisso
Renato Janine Ribeiro diz ainda ter escrito para o General Peternelli para cobrar um compromisso assumido por escrito com a SBPC de que, em sua atuação parlamentar, defenderia o ensino público superior gratuito. “A PEC viola esse compromisso. Talvez o deputado tenha se esquecido que o assumiu.”
Peternelli diz que não rompe com esse compromisso, porque está garantindo a gratuidade do ensino superior a quem precisa na PEC.
“Estamos contribuindo com a universidade para que ela tenham melhores condições de ensino e pesquisa e que propicie ensino de qualidade a quem não pode pagar”, diz o deputado.
Peternelli acredita que a polêmica em torno da proposta é despropositada.
“Não entendo por que essa repercussão toda. Estou simplesmente defendendo um posto de vista. Eu, por exemplo, tenho um filho que estudou na UnB [Universidade de Brasília]. Eu posso pagar, então, eu pago esse dinheiro. Isso faz parte dessa ideia de quem tem mais recursos paga.”
Peternelli explica que seu filho desistiu do curso de Arquitetura na UnB para cursar Educação Física em uma universidade privada. Questionado se ter um filho que estudou em uma universidade pública não contraria de certa forma a essência de sua proposta, Peternelli responde que não.
“Aí você estaria tirando minha liberdade. Eu matriculo meu filho onde ele tem direito, onde for necessário. Tem que colocar um filho nas melhores instituições. Não é porque pode pagar que não vai colocar lá”, diz o deputado. “Você está desvirtuando, não leve por esse lado. Leve pelo lado bom.”
Fonte: BBC News | Brasil
Fotografia: GETTY IMAGES