Royce Kurmelovs
BBC Future
A cerca de três horas de carro ao sul de Perth, na Austrália Ocidental, atrás da histórica cidade mineira de Greenbushes, o terreno além da escola primária revela uma cicatriz cinza e profunda.
Ali ficava uma antiga mina de estanho, conhecida como Cornwall Pit. Com cerca de 265 metros de profundidade, sua parede com desníveis representa um século de trabalho que começou em 1888, quando meio quilo de estanho foi retirado de um riacho próximo.
Quando o metal da superfície se esgotou na região, os métodos de extração acabaram dando lugar à mineração a céu aberto do veio de pegmatito – uma rocha com textura áspera, similar ao granito.
Até que, em 1980, outro metal foi encontrado em Greenbushes: o lítio. Mas os donos das minas não deram muita atenção a ele na época. O lítio é um metal alcalino reativo, macio e com cor de prata esbranquiçada. Ele era mais considerado uma bizarrice geológica.
Uma operação mineradora em pequena escala começou em 1983 para extração de lítio para uso em operações industriais específicas, como a fabricação de vidro, aço, fundição, cerâmica, lubrificantes e ligas metálicas.
Somente décadas depois, o risco existencial representado pelas mudanças climáticas foi amplamente percebido e os governos começaram a falar em substituir os cerca de 1,45 bilhão de carros movidos a gasolina em todo o mundo por veículos elétricos.
Foi então que as reservas de Greenbushes começaram a ser observadas de forma muito diferente.
Hoje, a mina de estanho de Cornwall está fechada e Greenbushes tornou-se a maior mina de lítio do mundo.
Em menos de dois anos, os preços do espodumênio australiano – a matéria-prima rica em lítio que pode ser refinada para uso em baterias de laptops, telefones e veículos elétricos – subiu mais de dez vezes.
Segundo a empresa especializada Benchmark Mineral Intelligence, com sede em Londres, o espodumênio atingiu US$ 4.994 (cerca de R$ 26,8 mil) por tonelada em outubro de 2022, contra US$ 415 (cerca de R$ 2,2 mil, em valores de hoje) em janeiro de 2021.
E, em 2040, a Agência Internacional de Energia prevê que a demanda por lítio cresça mais de 40 vezes sobre os níveis atuais, se o mundo pretender atingir os objetivos do Acordo de Paris.
Esta situação gerou comentários sobre uma nova corrida do lítio e a Austrália posicionou-se para ser o principal fornecedor mundial. O que traz a questão: enquanto o mundo busca esse metal para tentar ajudar na redução de carbono, a mineração de lítio é sustentável?
O aumento da extração
Em 2021, somente o lítio extraído em Greenbushes representou mais de um quinto da produção mundial e espera-se que o volume cresça ainda mais.
Em 2019, a empresa dona da mina, a Talison Lithium, foi autorizada a dobrar o seu tamanho. A expansão custará 1,9 bilhão de dólares australianos (US$ 1,2 bilhão, cerca de R$ 6,4 bilhões).
Quando completa, a mina irá cobrir uma área de 2,6 km de comprimento, 1 km de largura e 455 m de profundidade. O prédio mais alto de Londres, The Shard, poderia ser confortavelmente enterrado na mina, com seus 310 metros de altura – bem como os prédios mais altos do Brasil.
Greenbushes é a maior mina de lítio da Austrália, responsável por 40% das 55 mil toneladas do metal extraídas no país em 2021. Mas existem diversas outras minas logo atrás dela.
Ao todo, há outras quatro operações de extração de lítio de rocha bruta nas regiões mineradoras da Austrália Ocidental, perto de Kalgoorlie, no leste, e de Pilbara, no extremo norte do Estado.
Uma sexta mina de lítio – a única fora da Austrália Ocidental – é uma mina a céu aberto perto de Darwin, no Território do Norte, que iniciou operações no início de outubro de 2022. Duas outras minas estão em planejamento, com outras propostas, em vários estágios de implantação.
Sua produção combinada permitiu que a Austrália fornecesse cerca de metade do lítio extraído no mundo em 2021. Seus maiores concorrentes são o Chile e a China, que extraem seu lítio de “piscinas” de salmoura.
Mas isso deve mudar nos próximos anos, quando os países do chamado “triângulo do lítio” da América do Sul – Chile, Argentina e Bolívia, que juntos detêm a maior parte das reservas conhecidas de lítio do mundo – ampliarem a sua produção.
O Chile, sozinho, atualmente é responsável por um quarto da produção mundial e detém mais de 40% dos recursos mundiais. Em termos de recursos, a Bolívia tem 24% das reservas de lítio conhecidas e a Argentina, 21%, embora nenhum deles contribua significativamente para a produção global.
Com todos esses países procurando desenvolver sua indústria do lítio, o mundo enfrenta duas opções muito diferentes de fontes desse metal indispensável: da rocha sólida, como na Austrália, ou do lençol freático salino, como no Chile.
“Com relação à mineração do lítio em rocha sólida, o impacto ambiental é basicamente o mesmo de qualquer outra operação de mineração comparável”, afirma o professor Gavin Mudd, da Universidade RMIT de Melbourne, na Austrália. “A salmoura é radicalmente diferente.”
Mudd é presidente do Instituto de Políticas Minerais, uma organização independente que monitora a indústria mineradora australiana. Ele afirma que é comum haver desinformação e confusão sobre a mineração de lítio.
Segundo ele, por exemplo, a ideia de que o lítio é um recurso escasso já foi desmentida, mas continua presente.
“O lítio, na verdade, é um mineral muito comum”, afirma Mudd. “Ele é encontrado em toda parte, mas historicamente não nos preocupamos com a sua mineração.”
Quando o assunto é o impacto ambiental da mineração de lítio na Austrália, ele afirma que as pessoas frequentemente confundem a situação com o que ocorre na América do Sul.
A diferença começa na geologia. Em terrenos mais jovens como a América do Sul, o lítio é encontrado no fundo de lagos salgados incrustados nas grandes altitudes.
Já na Austrália, a geologia é mais antiga. Depósitos de pegmatito que contêm lítio são encontrados em todo o país, em pedaços de massa terrestre que colidiram há centenas de milhares de anos para formar o continente australiano.
Essas regiões incluem os crátons (rochas continentais estáveis há mais de um bilhão de anos) de Pilbara e Yilgarn, na Austrália Ocidental, a Província de Pine Creek, no Território do Norte, a região de Georgetown, em Queensland, e a área central do Estado de Victoria.
O processo de refino traz riscos ambientais causados pelo uso intensivo de energia e substâncias químicas.
Mas Allison Britt, diretora de consultoria mineral da agência governamental Geoscience Australia, afirma que o processo de extração de lítio na Austrália não é muito diferente das outras formas de mineração de metais.
Quando um recurso economicamente viável é identificado, a superfície é limpa, a terra é retirada, a rocha é dinamitada e os resíduos são removidos para serem processados, formando um concentrado.
“Cada depósito de rocha bruta é único”, afirma Britt. “Em depósitos com grau mais alto, você cava menos rocha em comparação com o lítio produzido.”
Na América do Sul, o processo é mais parecido com um grande e trabalhoso jogo de química. Como o lítio está no fundo de um lago salgado, ele normalmente é misturado com uma série de outros minerais.
Sua retirada exige o bombeamento da salmoura do fundo de um lago salgado para uma piscina e esperar a evaporação da água à luz do sol, até que as concentrações de lítio atinjam 6 mil partes por milhão.
É um processo que consome muita água – cerca de 1,9 milhão de litros são perdidos para a evaporação para produzir uma tonelada de lítio – e sempre existe o risco de vazamentos.
Riscos ambientais
Da mina, o lítio – tanto na Austrália quanto na América do Sul – precisa ser processado para poder ser utilizado. O carbonato de lítio retirado dos tanques de salmoura no Chile precisa ser transformado em hidróxido de lítio, que é o material preferido pelos fabricantes de baterias.
Já a rocha escavada do solo na Austrália precisa ser moída e torrada para produzir espodumênio. Esse material contém cerca de 6% de lítio e é então embarcado da Austrália para a China, que refina 60% do lítio do mundo e 80% do hidróxido de lítio do planeta.
Mas isso pode estar mudando. Como parte dos esforços para diversificar a cadeia de fornecimento, o governo da Austrália Ocidental está trabalhando para construir instalações locais de refino, perto das suas próprias minas de lítio.
Existem três propostas de novas instalações de refino de lítio na Austrália. E essas instalações enfrentarão seus próprios desafios ambientais.
Torrar espodumênio para criar o concentrado exige quantidades significativas de energia e de ácido sulfúrico. Ao final, os resíduos também precisarão ser descartados – um processo que precisa ser monitorado para evitar que cause poluição.
A mineração australiana de lítio ainda está nos seus primórdios, mas Maggie Wood, diretora-executiva do Conselho de Conservação da Austrália Ocidental (uma organização sem fins lucrativos que representa mais de 100 grupos ambientais em todo o Estado), afirma que a indústria está sendo cuidadosamente acompanhada.
“Por um lado, sabemos que precisamos reduzir a pegada de carbono o mais rápido possível e minérios fundamentais, como o lítio e uma série de outros, são parte desse caminho”, afirma Woods. “Mas também sabemos que a mineração destrói o meio ambiente.”
Os ambientalistas já levantaram preocupações, por exemplo, de que o sedimento da mina do Projeto de Lítio de Finniss, na Austrália Meridional, pode ter contaminado um riacho próximo. A BBC entrou em contato com a Core Lithium, dona do Projeto de Lítio de Finniss, para responder a essas afirmações, mas não recebeu resposta.
Kirsty Howey, uma das diretoras do Centro Ambiental do Território do Norte (organismo ambiental do Território), afirma que está preocupada com o impacto ambiental cumulativo da abertura de diversas minas para extrair depósitos de lítio entre Darwin – a capital do Território do Norte – e o famoso Parque Nacional de Litchfield, a uma hora de carro ao sul da cidade.
“Existem terrenos de lítio por todo o caminho”, afirma Howey. “Você tem essas vastas áreas do Território bastante preservadas pelos padrões globais que agora estão sujeitas [a permissões para mineração futura de lítio].”
“É um ecossistema tropical, de forma que você tem maior risco de ciclones, você tem enormes chuvas – a chuva é a inimiga da mineração. É com ela que os metais são levados para os cursos d’água e causam danos”, explica Howey. “Temos que suspender o desenvolvimento dos combustíveis fósseis, mas também precisamos controlar a mineração.”
A BBC entrou em contato com o Conselho de Minerais da Austrália, o organismo que representa a indústria de mineração do país, em busca de comentários sobre as preocupações a respeito do impacto da mineração do lítio, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.
Alguns dos líderes políticos da Austrália argumentam que obter metais para reduzir a pegada de carbono é a prioridade.
No início de outubro, quando o Projeto de Lítio de Finniss abriu o terreno a 80 km de Darwin, a Ministra da Indústria e da Mineração do Território do Norte Nicole Manison estava no local.
Em pronunciamento à imprensa, a Ministra disse: “precisamos ser realistas sobre esta transição. Existem materiais que você certamente precisa minerar para atingir a redução de carbono e combater as mudanças climáticas de frente – e muitos desses materiais são disponíveis no Território do Norte.”
Os problemas da mineração de lítio na Austrália não são diferentes dos geralmente verificados na indústria. A mineração a céu aberto escava cicatrizes profundas na paisagem, muitas vezes em ecossistemas que já estão sob pressão.
As operações de mineração podem levantar poeira, que pode contaminar os cursos d’água ou ser levada até as cidades, onde pode ser inalada pela população. Chuvas fortes podem deslocar os minerais e levá-los com a água para os rios próximos ou causar sua infiltração no lençol freático.
E, quando uma mina fecha, os trabalhos de reabilitação podem não ter sido adequadamente planejados ou seus operadores simplesmente desaparecem da noite para o dia.
Gavin Mudd afirma que esses problemas podem ser administrados. Estimativas indicam que a mineração de lítio de rochas sólidas será responsável pela emissão de 10 milhões de toneladas de CO2 até 2030, mas as refinarias podem ser construídas perto da fonte de extração para evitar o transporte para o exterior e assim reduzir parte das emissões causadas pelo transporte.
Enquanto isso, no Canadá, uma mina de ouro demonstrou que o equipamento de mineração pode ser eletrificado, possibilitando o uso de energia renovável para alimentar os seus sistemas e reduzir as emissões de CO2.
Mudd também observa que o lítio provavelmente não será minerado de forma tão intensiva na Austrália e, ao contrário do esperado, pode resultar em redução líquida da atividade de mineração em geral, à medida que se reduz a demanda de carvão.
“Na Austrália, estamos minerando algo da ordem de cinco a oito bilhões de toneladas [de rocha residual] por ano, apenas para conseguir nosso carvão”, afirma ele. “As pessoas não estão calculando que, se excluirmos o carvão da equação, o impacto é enorme.”
“Para mim, tudo traz muita esperança”, segundo ele. “Ainda existem questões sobre a forma de fazer as coisas, mas não é um problema com o lítio, é um problema com a forma em que regulamentamos a mineração.”
É preciso reciclar
Outra forma de reduzir ainda mais esses impactos é diminuir a necessidade de novas minas de lítio, ampliando as taxas de reciclagem. Atualmente, a Austrália recicla apenas 10% das suas baterias de íons de lítio usadas.
Libby Chaplin, executiva-chefe do Conselho de Gerenciamento de Baterias (BSC, na sigla em inglês), uma organização criada para supervisionar a reciclagem de baterias usadas onde, de outra forma, seria caro demais para a indústria privada, afirma que a reciclagem irá se tornar uma questão premente no final da década, quando as baterias dos veículos elétricos começarem a atingir o final da sua vida útil.
“Se não cuidarmos deste assunto, em um futuro não muito distante, teremos um problema muito sério de baterias usadas e pilhas de baterias de lítio de veículos elétricos estocadas”, afirma Chaplin”. “É a última coisa que queremos, pois a armazenagem de baterias de veículos elétricos pode ser problemática.”
Para Chaplin, se começar agora em pequena escala, a Austrália pode construir a infraestrutura adequada para impedir que isso se torne um problema, particularmente porque a distância é uma dificuldade. A necessidade de coleta, transporte e seleção de materiais através de um país continental é algo caro e difícil, mas a Austrália tem bons exemplos a seguir.
Chaplin indica o sistema australiano de reciclagem de baterias automotivas de chumbo-ácido, que muitos consideram um sucesso, para demonstrar como isso pode ser feito. E já existem medidas sendo tomadas nessa direção.
Em janeiro de 2022, o BSC formou um esquema colaborativo em parceria com fabricantes de baterias que aumentou a taxa de recuperação de pequenas baterias, de menos de 8% para mais de 16% em seis meses.
Para cada bateria importada, os fabricantes pagam 4 centavos de dólar australiano (US$ 0,03, cerca de R$ 0,16) por unidade de bateria equivalente (24 g) para participar do esquema. Esse valor é depositado em um fundo que cobre o custo de transporte dos locais de coleta em todo o país até os centros de reciclagem.
Este programa não inclui apenas as baterias de íons de lítio, mas mostra como enormes ganhos podem ser atingidos com rapidez.
Algumas pessoas questionam se é possível uma indústria de reciclagem de lítio em larga escala. Chaplin acredita que sim.
O lítio representa apenas 1% da bateria de um carro elétrico, mas a maior parte dos materiais – aço, plástico, alumínio e cobre – é recuperável. O restante – que inclui lítio, grafite e cobalto – é mais difícil, mas também pode ser recuperado.
Chaplin afirma que, desses materiais, a prioridade deve ser a recuperação de cobalto, que é o metal cuja mineração mais destrói o meio ambiente. Cerca de 70% da produção mundial atualmente têm origem na República Democrática do Congo.
Acredita-se que recuperar esse “valor perdido” pode atingir US$ 3,1 bilhões (cerca de R$ 16,6 bilhões). E a União Europeia, que aprovou uma norma sobre baterias que exige que os fabricantes misturem pelo menos 4% de lítio reciclado nas baterias novas, demonstrou como as regulamentações podem ajudar.
Chaplin concorda que é preciso melhorar a reciclagem das baterias de lítio para minimizar a demanda por mais extração.
“Não podemos conversar sobre o lítio ou as mudanças climáticas sem discutir como garantir que essas baterias sejam recuperadas no final da sua vida útil”, afirma ela. “Após a extração, temos a obrigação de manter o material em uso.”
*Com colaboração de Miriam Quick.
Fonte: BBC News | Brasil
Fotografia: GETTY IMAGES