Rafael Barifouse
Da BBC News Brasil em São Paulo
Incertezas e o medo da demissão passaram a fazer parte da rotina de trabalho dos 44 mil funcionários da Americanas.
A empresa, uma das maiores varejistas do país, anunciou um rombo bilionário e entrou em recuperação judicial para tentar evitar a falência.
A Americanas não descartou em um comunicado aos funcionários que vai fazer demissões, e o esperado é que ela faça isso.
Mas ninguém – nem a própria empresa – sabe dizer ao certo quanta gente vai ser mandada embora.
Outra dúvida é o que acontecerá com os empregados que não forem demitidos. Uma possibilidade é que os salários sejam reduzidos.
A Americanas tem ainda R$ 64,8 milhões em dívidas trabalhistas com ex-funcionários, que também vão entrar na recuperação judicial.
Tudo terá de ser negociado com os sindicatos e ex-funcionários. A lei dá algumas garantias aos trabalhadores, como receber todos os direitos trabalhistas em caso de demissão e ser os primeiros da fila na hora de receber o que a empresa deve.
Mas sua posição é considerada delicada, porque os credores com quem a Americanas tem dívidas maiores terão mais voz neste processo e a situação dos empregados pode ficar ainda mais complicada se a empresa falir.
A maior preocupação dos sindicatos no momento é com uma demissão em massa e que a companhia não pague o que é devido aos funcionários que venham a ser dispensados e ex-funcionários.
Eles dizem que a dívida total da Americanas, de R$ 41,2 bilhões, a coloca à beira da falência e pediram à Justiça na quarta-feira (25/1) o bloqueio de bens dos seus principais acionistas, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira.
As centrais sindicais apontaram que há quase 17 mil ações trabalhistas em andamento contra empresas do grupo Americanas, que somam R$ 1,53 bilhão, e querem que esse valor seja bloqueado das contas pessoais dos maiores sócios.
Elas dizem que houve uma “fraude contábil que se desenrolou durante anos na empresa” e da qual “são os três bilionários os maiores beneficiários da fraude”.
A Comissão de Valores Mobiliários, que regula o mercado de ações, está investigando se houve fraude e a responsabilidade dos acionistas.
Lemann, Telles e Sicupira disseram em uma nota conjunta que não sabiam do rombo da Americanas e não permitiriam fraudes ou manobras contábeis. As declarações dos acionistas indignaram líderes sindicais.
“É inacreditável. Eles estão faltando com a verdade, porque estão envergonhados por terem sido pegos com a boca na botija. Acho que eles se consideravam acima de Deus”, diz Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT) e do Sindicato dos Comerciários de São Paulo (SECSP).
Márcio Ayer, presidente do Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro, diz que as justificativas apresentadas por Lemann, Telles e Sicupira são um “absurdo”.
“Como essas figuras, que comandavam a empresa até o ano passado, não tinham noção do que estava acontecendo? Eles precisam ser responsabilizados. Não é justo o trabalhador pagar essa conta”, diz Márcio Ayer, presidente do Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro (SECRJ).
Os sindicatos estão se articulando nacionalmente para negociar com a empresa, que está presente em quase mil cidades, em todas as regiões.
Também planejam uma manifestação para os próximos dias para chamar atenção para a situação dos trabalhadores e cobrar que seus direitos sejam respeitados.
“Tem se falado muito dos acionistas e dos bancos, mas não dos trabalhadores. Parece que somos invisíveis. Mas o mais importante de tudo isso são as milhares de pessoas que trabalham para a empresa”, diz Patah.
A Americanas disse à BBC News Brasil que “se mantém comprometida com a transparência e as obrigações trabalhistas, como prevê a legislação”.
Também afirmou que está elaborando “um plano estratégico de otimização dos recursos para que decisões que garantam a sua sustentabilidade tenham efeitos em curto prazo”.
A empresa disse que “é comum que haja reestruturação” e reforçou “que manterá todos os seus colaboradores e públicos de interesse informados”.
Demissões
Na terça-feira (25/1), 300 líderes sindicais de todo o país tiveram uma primeira reunião com a empresa.
Em um encontro virtual com o gerente de Recursos Humanos e Relações Sindicais da Americanas, Lúcio Marques, eles pediram que a empresa apresente uma relação de todas as lojas e dos funcionários da companhia para entender melhor quem pode ser afetado.
A Americanas disse em seu último balanço, publicado em junho do ano passado, que tem 44.481 funcionários. Quase dois terços estão na região Sudeste. A empresa também tem uma presença relevante no Nordeste e no Sul e um pouco menor no Centro-Oeste e Norte.
O executivo da Americanas voltou a afirmar na reunião com os sindicatos que pode fazer demissões, mas não cravou e se justificou dizendo que a empresa ainda está avaliando sua situação financeira e elaborando o plano de recuperação.
“Eles falaram que podem fechar lojas deficitárias. Não somos ingênuos, a gente sabe que isso vai acontecer, mas vamos fazer pressão para preservar o máximo de empregos e para que todos os direitos sejam respeitados”, diz Márcio Ayer, do SECRJ.
Líderes sindicais dizem que o encontro foi amistoso e que ficou combinada uma nova reunião na próxima semana. A data ainda não foi marcada.
“Foi aberto um canal para a negociação e o diálogo, o que é positivo, mas não podemos esquecer que na ponta tem muitos trabalhadores preocupados porque a insegurança e a incerteza são muito grandes”, afirma Ayer.
O Ministério Público do Trabalho foi chamado para mediar as conversas, mas diz que vai primeiro acompanhar o andamento da recuperação e ver o que a empresa irá propor.
“Está tudo muito recente, não existe neste momento nada que possa ser negociado. Precisa levantar os débitos da empresa e o quadro de credores”, diz Bernardo Leôncio Moura Coelho, coordenador da Divisão Sindical e da Mediação da Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região.
A empresa tem dois meses a partir da entrada em recuperação judicial, que aconteceu em 19 de janeiro, para apresentar o plano de recuperação.
Os sindicatos dizem que querem evitar uma grande onda de demissões e garantir que os funcionários dispensados receberão tudo o que devem o mais rápido possível.
As falências emblemáticas das redes Mappin e Mesbla e, mais recentemente, o caso da Ricardo Eletro, que entrou em recuperação, fechou todas as lojas, demitiu mais de 70% dos empregados e ainda é cobrada na Justiça por direitos trabalhistas, são citados como exemplos preocupantes do que pode acontecer na crise da Americanas.
“Quando eles anunciaram a inconsistência contábil de R$ 20 bilhões, o alerta vermelho acendeu para os comerciários por causa de experiências do passado. Teve empresas que foram à falência, e o funcionário demorou mais de 20 anos para receber. Estamos lutando para que isso não aconteça”, diz Ricardo Patah, do SECSP.
Redução de jornada e salário
Os milhares de funcionários da Americanas seguirão dando expediente normalmente por enquanto, até a empresa anunciar o que fará, explica o advogado trabalhista Otávio Pinto e Silva, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
“Os contratos de trabalho estão mantidos, é claro que com todas as incertezas sobre o futuro da empresa, mas a vida continua”, diz.
Ele explica que a recuperação judicial é um processo que busca manter uma companhia funcionando e preservar os empregos.
A empresa pode propor em uma situação desse tipo uma redução de jornada de trabalho e de salários. Isso teria de ser aprovado pelos empregados em assembleias sindicais.
“A Constituição prevê que os salários são irredutíveis salvo negociação coletiva, então, eles vão ter que levar a proposta para os trabalhadores e conversar com os sindicatos de cada localidade”, diz Pinto e Silva.
Quem for demitido terá de receber os mesmos direitos trabalhistas a que teria direito se fosse mandado embora por uma empresa que não está em crise.
Isso significa que a Americanas vai precisar pagar aviso prévio, 13º terceiro proporcional, liberar o FGTS, pagar a multa de 40% sobre o valor do fundo e tudo mais a lei trabalhista prevê em caso de demissões sem justa causa.
A lei de recuperação judicial determina ainda que os créditos trabalhistas devem ser os primeiros a ser pagos, explica o promotor Bernardo Leôncio Moura Coelho.
“Se o dinheiro acabar com as dívidas trabalhistas, ninguém recebe mais”, diz.
O plano não pode prever um prazo maior do que 30 dias para o pagamento de créditos trabalhistas devidos em salários no valor de até cinco salários mínimos, contraídos pela empresa até três meses antes de ela entrar em recuperação.
As dívidas trabalhistas acima deste valor devem ser pagas em até um ano após a entrada em recuperação judicial, mas a empresa poderá pagar em até dois se der ao juiz garantias de que conseguirá fazer isso e a extensão do prazo for aprovada pelos credores.
A lei estabelece que terão essa prioridade na fila de credores os empregados e ex-empregados com até 150 salários mínimos para receber. O que exceder isso será pago junto com as dívidas de outros credores comuns, conforme o plano que vier a ser aprovado.
Mas há uma ressalva importante aqui: se o prazo for de dois anos, a empresa precisa pagar os créditos trabalhistas integralmente, sem a possibilidade de descontos.
Desconto nas dívidas trabalhistas
Este é um ponto delicado no processo da recuperação judicial, porque a empresa pode negociar um abatimento de suas dívidas com seus credores, inclusive com os funcionários demitidos.
Esse deságio significa que, na prática, quem for demitido muito provavelmente não receberá tudo que a empresa deve, uma possibilidade que desagrada os sindicatos.
No caso da Ricardo Eletro, por exemplo, esse desconto foi de 60% a 90%, de acordo com o valor que o trabalhador tinha para receber. Quanto maior o valor, maior foi o desconto.
O promotor Bernardo Coelho explica que a lógica da lei nesse ponto é que é preciso dar alguns benefícios para a companhia para que ela consiga se recuperar, tendo em vista a manutenção dos empregos.
“A empresa é beneficiada por causa do seu poder de gerar empregos. Se a Americanas mandar 20 mil pessoas embora e pagar com deságio, ainda serão mantidos 20 mil empregos. Se todos forem demitidos, é pior”, diz.
No entanto, explica Coelho, o deságio pode não ser admitido pela Justiça para os valores até cinco salários mínimos, por causa da garantia de irredutibilidade salarial prevista na Constituição.
Mas, acima disso, sim. “Porque entra em conflito com os princípios da lei de recuperação Em casos assim, eu digo que a pessoa vai receber, mas com deságio”, diz o promotor.
Otávio Pinto e Silva diz que quem não concordar com esse desconto, mesmo que ele seja aprovado na assembleia sindical, pode acionar judicialmente a empresa para cobrar que ela pague tudo que deve.
“A lógica da recuperação é que todos teriam que colaborar para a empresa se recuperar, mas um trabalhador pode buscar a Justiça individualmente e alegar que a Constituição prevê a irredutibilidade para tentar receber integralmente”, diz o professor da USP.
O plano de recuperação precisa ser aprovado pelos credores da empresa, em uma assembleia-geral, e isso inclui os funcionários que forem demitidos.
Mas Coelho explica, no entanto, que os votos dos trabalhadores têm em geral um peso menor na deliberação sobre o plano.
“O trabalhador não tem muita voz, porque cada credor tem poder de voto de acordo com o tamanho da sua dívida. Se um banco tem um valor para receber que supera em dez, cem vezes os créditos trabalhistas, o seu voto terá um peso maior”, afirma.
A posição dos funcionários demitidos também é frágil porque, apesar de os valores que eles têm para receber serem em geral muito menores do que os de empresas e bancos, esse dinheiro faz muito mais falta no dia-a-dia de uma pessoa.
Uma empresa pode compensar a dívida não paga com outras receitas. O trabalhador em geral tem só o salário, e sem ele pode não ter como pagar as contas ou colocar comida na mesa.
Por isso, eles têm mais pressa, e sua margem de negociação é mais estreita do que a de outros credores.
Além disso, aceitar uma redução de salário ou receber menos do que deveria em uma rescisão comum pode ser uma perspectiva melhor do que se a empresa falir.
Em casos assim, todos os empregados são demitidos e entram no quadro geral de credores. Os bens da empresa são arrecadados e vendidos para pagar os credores.
“Os ativos da empresa podem ser insuficientes para remunerar todo mundo, e um trabalhador pode ficar sem receber ou receber daqui a 10, 15 anos e quem vai ver a cor desse dinheiro vai ser o filho ou o neto”, diz Pinto e Silva.
Fonte: BBC News | Brasil
Fotografia: GETTY IMAGES