Acordos comerciais, obras e dinheiro: como Lula tentou convencer Uruguai a desistir de acordo com a China

Leandro Prazeres
Enviado especial da BBC News Brasil a Montevidéu

Em sua viagem ao Uruguai em meio a uma crise no Mercosul, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prometeu acelerar as negociações do acordo do bloco com a União Europeia e disse estar aberto a conversar sobre um acordo entre o bloco e a China. A posição foi dada após reunião com o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, nesta quarta-feira (25/1).

“Eu disse ao presidente Lacalle e tenho dito aos meus ministros é que vamos intensificar as discussões com a União Europeia e vamos firmar esse acordo pra que a gente possa discutir um possível acordo China-Mercosul”, disse Lula após a reunião Lacalle Pou.

O acordo comercial com a União Europeia foi firmado em 2019, mas ainda não está em vigor porque precisa ser ratificado pelos parlamentos de todos os países envolvidos. Na Europa, países como a França fizeram críticas à política ambiental do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), travando o processo.

Lula chegou ao Uruguai após participar da VII reunião da Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac). Ele desembarcou em solo uruguaio com a missão de convencer Lacalle Pou a desistir de um acordo de livre comércio com a China que vem sendo negociado há pelo menos dois anos. Para o governo brasileiro, o acordo poderia representar a “destruição” do Mercosul.

Fontes do governo brasileiro ouvidas pela BBC News Brasil sob a condição de anonimato apontaram que o país ofereceria algumas contrapartidas ao Uruguai para tentar dissuadir Lacalle Pou de aderir ao acordo com os chineses.

No pacote, estavam três itens principais: a retomada de obras de infraestrutura que interligam ou beneficiam o Brasil e Uruguai como pontes, ferrovias e hidrovias; retorno das contribuições do Brasil para um fundo de fomento a projetos dentro do bloco; e a promessa que do Brasil não deverá mais fazer reduções unilaterais de tarifas de importação de produtos de fora do bloco.

Lula, Mujica e suas esposas abraçadas e sorrindo para foto em área arborizada
Lula foi à chácara do ex-presidente uruguaio José Mujica, na zona rural de Montevidéu – GASTON BRITOS/EPA-EFE/REX/SHUTTERSTOCK

Depois de se encontrar com Lacalle Pou, Lula foi recebido pela intendente (equivalente a governadora) de Montevidéu, Carolina Cosse, em uma cerimônia que contou com a presença de centenas de apoiadores de Lula e do partido de centro-esquerda Frente Ampla, que convocou pessoas apoiadores para receber o presidente brasileiro.

Após esse encontro, Lula foi à chácara do ex-presidente uruguaio José Mujica, na zona rural de Montevidéu. Os dois conversaram, mas Lula não deu declarações após o encontro.

Uruguai, Mercosul e China

O Uruguai, assim como o Brasil, Paraguai e Argentina, é um dos quatro membros fundadores do Mercosul, criado em 1991. A Venezuela foi integrada ao grupo em 2012, mas está suspensa desde 2016 por descumprir o protocolo de adesão. A Bolívia é um membro associado.

O bloco tem como uma das suas principais regras a adoção de uma tarifa externa comum (TEC), uma espécie de imposto único a ser cobrado nos países do grupo, ainda que haja normas prevendo exceções.

Outra regra considerada basilar do Mercosul é a que impediria os países-membros de firmarem acordos comerciais e alfandegários de forma isolada. A ideia é que a unidade do bloco não pode ser mantida se um dos seus membros desse condições comerciais mais vantajosas para um país de fora do grupo.

É neste ponto que reside a principal controvérsia do grupo atualmente. Desde pelo menos 2021, o governo uruguaio comandado pelo político da direita tradicional do país, Lacalle Pou, negocia com a China a assinatura de um acordo de livre-comércio.

Na prática, produtos chineses poderiam entrar no Uruguai pagando taxas de importação menores que as praticadas dentro do Mercosul, o que poderia prejudicar o funcionamento do bloco.

Nos últimos anos, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o Brasil evitou criticar publicamente a postura uruguaia. Em novembro do ano passado, porém, em uma nota conjunta, Brasil, Paraguai e Argentina anunciaram que tomariam as medidas jurídicas cabíveis caso o acordo avançasse.

Com a mudança de gestão neste ano, a diplomacia brasileira começou a enviar novos sinais de que o acordo não seria bem-vindo.

Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo neste mês, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, disse que o acordo poderia “destruir” o Mercosul.

Apesar da manifestação do ministro brasileiro, Lacalle Pou reforçou, na tarde de quarta-feira (24/1) que a intenção do Uruguai é avançar com as negociações com a China.

“A decisão uruguaia é avançar em um Tratado de Livre Comércio. Se for com o Mercosul é melhor, todo mundo sabe da força que Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina podem ter juntos. Se não for assim, o que fizemos até o momento é avançar em um estudo de factibilidade com a China que teve resultados positivos e estamos para começar a negociar bilateralmente”, afirmou Lacalle Pou em entrevista coletiva durante a Celac.

Celso Amorim
‘O Mercosul precisa ser preservado’, diz Celso Amorim – REUTERS

Horas depois, também em Buenos Aires, o ex-ministro das Relações Exteriores e atual assessor especial do presidente Lula, Celso Amorim, disse prezar pelas relações com o Uruguai, mas afirmou que o Mercosul precisaria ser “preservado”.

“A nossa posição é a seguinte: prezamos muito a relação com o Uruguai. Achamos que o [país] é exemplo de civilidade em muitos aspectos dentro da América Latina, que em muitas coisas eles estão muito avançados. Mas achamos que o Mercosul precisa ser preservado”, disse.

‘Menu’ brasileiro

As fontes ouvidas pela BBC News Brasil detalharam parte do que foi colocado na mesa durante as conversas com o governo uruguaio.

O ponto foi a retomada de obras de infraestrutura entre os dois países e que, segundo essas fontes, estariam paradas. Entre elas estão pontes, rodovias e hidrovias que aumentariam a integração física dos dois países.

O segundo foi a regularização das contribuições do Brasil ao Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem).

Trata-se de um fundo mantido com recursos dos países-membros destinado a financiar obras e projetos na área do bloco. Pelas regras, os países com as maiores economias são os que mais devem contribuir e os que menos devem receber. A ideia era que o mecanismo ajudasse a reduzir as assimetrias entre os países do bloco.

Dos US$ 100 milhões que devem ser fornecidos ao fundo todos os anos, o Brasil tem que contribuir com 70%, Argentina com 27%, Uruguai com 2% e Paraguai com 1%.

O problema é que o Brasil tinha, até o final do ano passado, um passivo de pelo menos R$ 518 milhões com o fundo.

A proposta brasileira é que os atrasados sejam pagos e as contribuições regulares sejam mantidas. Isso favorece o Uruguai porque apesar de contribuir com apenas 2% do total do fundo, o país pode receber até 32% dos recursos.

O terceiro item da pauta brasileira foi o fim das reduções unilaterais de impostos de importação para países fora do bloco. As reduções unilaterais estão previstas nas regras do Mercosul como uma forma de atender demandas específicas de alguns produtos.

O problema é que, nos últimos anos, essas reduções foram criando tensões entre os membros do bloco.

Após a reunião, Lacalle Pou disse que deverá manter as negociações com a China, mas demonstrou estar aberto à entrada do Brasil e os outros países do bloco nessas conversas.

“O peso econômico, o peso demográfico do Brasil é muito importante e seguramente, se há uma decisão do presidente Lula e do governo em avançar com a China, nós tranquilamente poderemos ver se isso realmente condiz com as necessidades dos nossos país”, disse.

Fonte: BBC News | Brasil
Fotografia: GASTON BRITOS/EPA-EFE/REX/SHUTTERSTOCK

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