Veronica Smink
Da BBC News Mundo na Argentina
Em meio à incerteza gerada pelo inesperado sucesso do economista de direita radical Javier Milei nas eleições primárias, o Banco Central da Argentina (BCRA) anunciou uma desvalorização de 18% do peso, o que provocou uma alta de 22% na cotação do dólar “oficial”.
Trata-se de mais um forte impacto para um país que já tem uma das maiores taxas de inflação do mundo, que ultrapassa 115% ao ano.
Com o anúncio do BCRA — que também elevou a taxa de juros para 118% — e a cotação oficial do dólar foi para 350 pesos no mercado “oficial”.
O objetivo dessa abrupta desvalorização é deixar o câmbio praticado pelo governo um pouco mais próximo dos demais tipos de dólar que o país possui, principalmente do dólar blue (“azul”, em inglês), que é a principal referência utilizada pelos argentinos.
Na segunda-feira, esse dólar de mercado — que já havia subido cerca de 20%, de 500 pesos para mais de 600 pesos nas duas semanas antes das primárias — também passou por outra alta abrupta, superior a 10%, chegando a mais de 680 pesos.
A maioria dos economistas atribui essa elevação à incerteza financeira causada pela surpreendente vantagem eleitoral de Milei, um candidato que se diz a favor do livre mercado — e que, se vencer a eleição marcada para 22 de outubro, prometeu dolarizar a economia e fechar o banco central.
Estreitar a distância entre o valor do dólar oficial e dos dólares financeiros é uma das exigências que o Fundo Monetário Internacional (FMI), principal credor do país, vem cobrando do governo argentino. O país deve cerca de US$ 44 bilhões ao FMI, que foram contratados ainda durante o governo de Mauricio Macri.
A medida buscaria estancar a sangria de dólares que tem levado as reservas do BCRA ao limite.
Mas por que a Argentina tem tantos tipos de dólar? Conheça os motivos e as diferenças entre eles a seguir.
Os ‘cepos’
A Argentina tem um problema recorrente de alta inflação há décadas, gerado em parte pela tendência dos governos de imprimir dinheiro para financiar altos gastos públicos.
Isso leva — como acontece agora — à desvalorização do peso.
Por isso, os argentinos usam o dólar como referência de preços e como uma moeda de poupança.
A indústria nacional também é fortemente dependente de insumos importados.
Mas a crescente demanda por dólares em um país que não os produz criou repetidamente um problema conhecido tecnicamente como “restrição externa”.
Em suma: os dólares não são suficientes, e isso cria uma crise.
Para tentar conter a saída de divisas e preservar as reservas do Banco Central, os vários governos que estiveram no poder nas últimas duas décadas — tanto kirchneristas quanto macristas — aplicaram restrições à compra de moedas estrangeiras, conhecidas localmente como “cepos”.
Esses controles de capital geraram um fenômeno muito particular: a coexistência de toda uma série de preços diferentes para a moeda americana na Argentina. Em alguns casos, as cotações delas podem variar em mais de 100%.
1. Dólar poupança
É a cotação a qual o poupador argentino tem acesso em dólar oficial.
Embora o BCRA estabeleça um valor para o dólar, pessoas comuns não podem acessar a moeda norte-americana por esse preço.
Eles devem pagar uma sobretaxa de 75% e só podem comprar, no máximo, US$ 200 por mês — e isso se atenderem a uma série de requisitos que apenas uma minoria muito pequena da população pode cumprir.
É por isso que muitos poupadores argentinos recorrem ao mercado ilegal para comprar a moeda.
2. Dólar ‘blue’
Como já mencionado anteriormente, é assim que se chama o dólar comprado fora dos meios oficiais.
Para a maioria dos argentinos, essa é a forma mais comum de acessar a moeda americana além dos limites estabelecidos pelo governo.
Os argentinos usam blue como principal referência para o dólar, já que a cotação dele segue a lógica de oferta e demanda.
Quando se compra ou se vende uma casa, um carro ou algo de grande valor, como um computador ou um celular, utiliza-se esta cotação.
Porém, por ser regido pelas leis do mercado, esse tipo de dólar também é muito mais volátil e pode disparar repentinamente, como já aconteceu várias vezes antes e depois dos dias de eleições.
Quando o blue sobe com grande velocidade, pode chegar a um preço até mais de 100% superior ao valor praticado no mercado oficial.
Esse fenômeno é conhecido como la brecha cambial e, quanto mais essa diferença cresce, maior fica a pressão para a desvalorização do peso.
3. Dólar cartão
Quem usa o cartão de crédito para pagar serviços em dólares (como assinaturas da Netflix e da Amazon) ou pequenos gastos no exterior também tem uma cotação própria, que é igual à do dólar poupança, com acréscimo de 75% de encargos.
Mas esse esquema só vale quando as despesas são inferiores a US$ 300.
4. Dólar turista ou ‘Catar’
Se um argentino viaja para o exterior e gasta mais de US$ 300, a alíquota de imposto sobe para 100%.
Como essa política foi anunciada pouco antes da Copa do Mundo de 2022 — que a Argentina acabou vencendo —, ela foi apelidada de dólar Catar, em referência ao país-sede da competição.
5. Dólar bolsa
Quem não quer comprar dólares fora do sistema financeiro formal tem uma alternativa: o “mercado de pagamentos eletrônicos” (MEP, na sigla em espanhol), que é uma forma legal para obter moeda estrangeira.
Isso é feito por meio da compra e da venda de títulos financeiros e ações, o que exige a intermediação de uma corretora de valores.
Por isso, esse tipo é conhecido informalmente como “dólar bolsa”.
A operação funciona assim: é preciso adquirir títulos cotados tanto em peso argentino quanto em dólar americano.
Eles são comprados em moeda local e vendidos no exterior.
Mas a moeda que entra na conta no final do processo está sujeita à regulamentação local.
6. Dólar CCL
O dólar “contado com liquidação” (CCL) é outra ferramenta financeira, mas esta permite trocar pesos por dólares no exterior.
Para muitas empresas e investidores, essa é a principal forma de adquirir moeda estrangeira e tirá-la do país legalmente.
Por isso, muitos analistas econômicos consideram o CCL e o dólar bolsa como os melhores termômetros para estimar o valor “real” da moeda americana no contexto argentino.
Para obter a chamada “contagem com liquidez” é preciso ter uma conta no exterior. Por isso, esse esquema não é utilizado pelos poupadores argentinos comuns.
O dólar CCL utiliza ações ou títulos listados na Argentina e também em outro mercado internacional (como em Wall Street, nos EUA).
Como o dólar bolsa, eles são comprados em pesos argentinos, mas depois esses ativos são transferidos para a conta no exterior e vendidos em troca de dólares americanos.
O cálculo de quantos dólares são comprados com determinada quantidade de pesos determina essa cotação.
Essas operações têm sido amplamente utilizadas para transferir dólares para outros países quando empresas e bancos são proibidos ou limitados de enviar dividendos para suas controladoras localizadas fora da Argentina.
Fonte: BBC News | Brasil
Fotografia: GETTY IMAGES