Thais Carrança – @tcarran
Da BBC News Brasil em São Paulo
“Era uma empresa bem bacana. A cultura deles era o que chamava mais a atenção. O acesso aos líderes era muito fácil, os benefícios eram bem bons também.”
“O único problema era que as mudanças eram muito rápidas, e não eram comunicadas. Um dos valores da empresa era a transparência, mas isso era só no papel. Quando aconteciam as mudanças, a gente era sempre pego de surpresa. Foi exatamente isso que aconteceu com as demissões”, conta uma trabalhadora demitida recentemente de uma startup de serviços residenciais.
“Marcaram de última hora uma reunião por vídeo com 36 funcionários. Foi onde eles comunicaram a demissão em massa de todo mundo”, diz a ex-funcionária, que optou pelo anonimato.
Segundo ela, o dono da empresa explicou que um grande investimento esperado não aconteceu e, por conta disso, e das mudanças do mercado, a empresa estava mudando seu modelo de negócios.
“Para mim, foi uma forma muito cruel de demissão. Todo funcionário sabe que a qualquer momento pode ser demitido. Mas a notícia não deveria ser dada na frente de todo mundo, após dias sem informação”, afirma.
“É inevitável que você se sinta injustiçada, diminuída, por conta da situação. Ninguém pôde falar nada, porque os microfones foram bloqueados. Então a gente só pôde ouvir e aceitar tudo que estava acontecendo. Faltou transparência e empatia.”
A demissão relatada pela trabalhadora é uma de centenas que têm sido feitas nos últimos meses pelas startups brasileiras, em uma onda que afeta também outros países.
Entre as empresas novatas que demitiram em massa recentemente no país estão Facily, Kavak, Vtex, Favo, QuintoAndar, Loft, Olist, Mercado Bitcoin, Zak, Bitso, TGroup, Sami e Sanar. Todas dispensaram dezenas, e em alguns casos até centenas, de funcionários ao longo do primeiro semestre de 2022.
Os trabalhadores demitidos dizem compreender o cenário macroeconômico, as dificuldades enfrentadas pelas empresas e a natureza volátil de negócios novos e inovadores. Mas criticam a forma considerada desrespeitosa como muitas dessas demissões coletivas têm sido conduzidas.
O caso da funcionária demitida por vídeo e em grupo não é isolado.
A startup Zak, de gestão de restaurantes, por exemplo, anunciou para seus funcionários em 13 de maio, em uma reunião por vídeo, que um investidor havia voltado atrás num aporte de recursos e que, por conta disso, a empresa iria demitir 40% do quadro.
Na sequência, os que seriam demitidos receberam convites para reuniões de 20 pessoas, onde os gestores oficializaram as demissões, relatam ex-funcionários.
“Tinha gente que começou na segunda-feira e foi demitida na sexta. E eles estavam fazendo recrutamento ativo, trazendo pessoas de outras empresas. Eu mesma estava em uma empresa há mais de um ano e fui abordada por um recrutador da Zak. Fiquei pouco mais de 30 dias e aconteceu essa demissão em massa”, conta uma funcionária demitida que também optou pelo anonimato.
Procurada pela BBC News Brasil, a Zak afirmou em nota que vem sofrendo as consequências de um cenário macroeconômico adverso. “Estamos comprometidos a apoiar todos os colaboradores afetados e reiteramos que esta decisão foi tomada com extremo cuidado e ponderação, e como último recurso”, completou a empresa.
Juros em alta e fuga de investidores
Felipe Matos, presidente da Abstartups (Associação Brasileira de Startups), destaca que a onda de demissões coletivas em startups é um fenômeno global, resultado do aumento das taxas de juros pelos governos para combater a inflação.
“Quando os juros sobem, os investimentos de risco costumam ser penalizados. Basicamente, do ponto de vista dos investidores, vale mais a pena deixar o dinheiro em aplicações mais seguras, como títulos do tesouro e outras aplicações indexadas às taxas de juros, do que arriscar investir em uma startup ou no sistema produtivo, que são investimentos de risco muito maior”, diz Matos.
Além de impactar o balanço entre risco e retorno dos investimentos, a alta de juros também afeta o valor das empresas (“valuation“, no jargão de mercado em inglês). Isso porque esse valor é estimado calculando o fluxo de caixa futuro da empresa, descontada a taxa de juros. Assim, quanto maiores os juros, menor a avaliação das companhias.
O aumento dos juros também implica em desaceleração da atividade econômica, já que fica mais caro para famílias e empresas tomarem empréstimos para consumir e investir. Com isso, a própria geração de caixa das empresas é prejudicada e muitos planos de crescimento precisam ser revistos.
“Enquanto antes tinha um paradigma em que valia mais a pena crescer do que ser lucrativo, porque existiam investidores dispostos a bancar esse crescimento, mesmo com caixa negativo, agora isso não é mais verdade. As empresas precisam ter mais atenção ao caixa, mesmo que isso signifique crescer mais devagar”, afirma.
“É basicamente por isso que temos visto essa onda de demissões”, diz o representante. “Ninguém sabe exatamente quanto tempo esse ciclo vai durar, nem o quão profundo ele será, se viveremos uma crise maior. É difícil prever, mas as empresas estão se preparando, congelando investimentos e conservando caixa para atravessar essa fase em que se espera que haverá menos capital disponível.”
Para Matos, o desconforto de trabalhadores com a forma como algumas demissões em massa têm sido conduzidas está relacionado à própria natureza da demissão coletiva por questões econômicas ou de reestruturação das empresas.
“É um problema de qualquer demissão em volume. Uma coisa é demitir alguém por questão de performance, em que a pessoa recebe um feedback [retorno], existe uma avaliação. Essa é uma demissão que está dentro do esperado. Quando vem uma crise e a empresa precisa cortar, muitas vezes ela corta pessoas que têm um bom desempenho. Isso sempre vai causar desconforto.”
‘Me senti descartado, foi humilhante’
Desconforto é pouco para descrever o que sentiu o carioca Vinicius Mota ao ser demitido da Kavak, startup de revenda de carros usados.
“Me senti usado e descartado. Ser mandado embora é normal, todo contrato uma hora chega ao fim. Mas a forma como foi conduzido foi humilhante. Não só para mim, mas para 90% dos colaboradores”, diz o técnico em manutenção automotiva de 28 anos.
Mota, que trabalhou por cinco meses como inspetor de qualidade na Kavak até ser demitido, conta que os funcionários já vinham percebendo uma queda de movimento nas vendas, mas eram repetidamente assegurados pela gerência de que estava tudo bem e dentro do planejado.
Em 6 de maio, a empresa inclusive realizou um grande evento no Rio de Janeiro, reunindo toda a equipe com um farto café da manhã e assegurando que ninguém seria demitido, relata.
Um mês depois, em 7 de junho, a equipe foi chamada para uma reunião, sem informação do que seria discutido. Na chegada, os funcionários foram recebidos por seguranças, portando listas com nomes. Os funcionários eram então encaminhados ao 6º andar ou ao interior da loja — posteriormente, ficaram sabendo que no 6º andar estavam os “salvos” e na loja, os demitidos.
Os cerca de 50 funcionários reunidos dentro da loja tiveram que aguardar por quase uma hora, cercados por seguranças, sendo impedidos de bater o ponto, tomar café ou ir ao banheiro sem acompanhamento, lembra o técnico em manutenção.
Objetos e carros haviam sido retirados da loja, o que fez os trabalhadores — a maioria de operação e vindos de bairros populares do Rio — sentissem que havia um temor de que eles pudessem roubar ou destruir algo, embora naquele momento ainda fossem funcionários da empresa.
Por fim, os funcionários foram divididos em grupos de 12 a 15 pessoas e a demissão feita através da leitura — por gerentes que não eram os gestores diretos dos demitidos — de uma carta formal, que dizia que a estratégia da empresa havia mudado.
Estima-se que a empresa tenha demitido 300 pessoas no Rio e em São Paulo nesse último mês, mas a Kavak não confirma o número oficial. Procurada pela BBC News Brasil, a assessoria de imprensa da empresa respondeu em nota que “a Kavak prefere não comentar”.
Mota conta que alguns colegas pensam em entrar com processo contra a empresa por assédio moral no momento da demissão. Ele se concentra na busca por um novo emprego, mas quer agora ficar longe de startups. “Prefiro passar longe, como profissional eu não confio mais”, afirma.
O que diz a legislação sobre demissões coletivas
Ricardo Calcini, professor de direito do trabalho na FMU, observa que, após a reforma trabalhista de 2017, a demissão individual e a coletiva passaram a ser consideradas equivalentes, sendo dispensada autorização prévia por parte do sindicato profissional.
Em 8 de junho deste ano, o STF (Supremo Tribunal Federal) ratificou esse entendimento, mas estabeleceu que os sindicatos devem ser comunicados sobre dispensas coletivas.
Nas startups, que são empresas jovens, com alta rotatividade e onde os trabalhadores em geral não estão ligados a sindicatos, Calcini avalia que acaba prevalecendo o texto da reforma trabalhista.
“Sem representatividade [sindical], com número reduzido de funcionários e um giro grande, quando o Supremo fala que tem que comunicar o sindicato, para as startups ficou algo vazio”, afirma.
O especialista lembra que os dispensados em demissões coletivas têm todos os direitos normais de uma demissão: aviso prévio de 30 dias indenizado, 13º salário proporcional, férias proporcionais acrescidas do terço constitucional, multa de 40% do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), liberação das guias para saque do FGTS e saldo de salário.
Quanto à possibilidade de ir à Justiça por situações abusivas no momento da demissão, Calcini afirma que é preciso avaliar caso a caso.
“A Justiça do Trabalho entende uma conduta como assediante quando ela passa do razoável. Toda vez que houver excesso ou abuso do exercício do poder de dispensa, isso pode configurar dano moral e ser passível de indenização correspondente. Mas isso tem que ser avaliado caso a caso.”
‘Responsabilidade emocional’
Marina Proença, cofundadora da Favo, startup de venda direta de produtos de supermercado para a classe C, passou pela experiência da demissão coletiva neste início de junho, mas na outra ponta.
Com a decisão da empresa de encerrar atividades no Brasil e focar no negócio peruano, a empreendedora demitiu em um dia 171 funcionários diretos e comunicou a suspensão da operação brasileira aos mais de 7 mil representantes comerciais e 40 motoristas parceiros.
“Fizemos um plano muito detalhado, para cuidar que nada fosse feito de maneira grosseira. Fizemos todas as conversas com os funcionários um a um, com a comunicação majoritariamente feita em dupla — o gestor direto e mais uma pessoa para ajudar a tirar dúvidas. Tudo foi feito em um dia, para evitar que as pessoas ficassem ansiosas”, conta Marina.
As conversas foram feitas por vídeo, pois a empresa não tem escritório, e tiveram duração de 5 a 10 minutos cada, com espaço para os demitidos falaram o que quisessem. Alguns grupos pediram para ter conversas mais longas posteriormente.
Aos funcionários diretos, o plano de saúde e o vale alimentação foram estendidos por alguns meses e os computadores e celulares, oferecidos para compra por valores reduzidos.
Para os representantes comerciais com situação de renda mais crítica, foi criado um plano de “desmame” com a manutenção da operação reduzida por mais 30 dias. A empresa também tenta ajudar na recolocação de funcionários, representantes comerciais e motoristas, inclusive através de parcerias com empresas concorrentes.
A empresa criou ainda uma lista oficial de talentos para apresentar seus funcionários a possíveis novos contratantes. A lista foi publicada no site Layoffs Brasil, criado pelo carioca João Gabriel Santos, de 21 anos, para ajudar na recolocação dos demitidos em massa por startups.
“Eu fiquei com muito medo, tanto de fazer as demissões, como de avisar os vendedores. Porque é muito triste, as pessoas doam muito do seu afeto. Mas combinamos de ser extremamente transparentes, apesar da dor”, diz a fundadora.
“Não consigo nem imaginar fazer de outro jeito, apesar de já ter passado por isso em outros lugares quando não era minha empresa. Infelizmente, acho que a menor parte dos líderes e dos empreendedores têm uma responsabilidade emocional com a empresa. Quando a gente fala em segurança psicológica, a maioria não sabe nem o que é isso”, afirma.
É possível demitir em massa de maneira humanizada?
Para Rafael Souto, especialista em recursos humanos e presidente da Produtive, consultoria especializada em recolocação no mercado de trabalho, a demissão não deve ser encarada pelas empresas como um evento isolado, mas como um processo, que requer preparo dos gestores.
“A demissão pode ser feita por vídeo, mas não pode de forma alguma ser feita de forma coletiva”, diz o consultor.
“Os gestores de cada área devem fazer a comunicação individualmente, porque uma das premissas para uma demissão responsável é você comunicar a decisão sem enrolação, explicar os motivos de forma clara e escutar a pessoa. Faz parte da demissão humanizada dar espaço para a pessoa falar e é importante ouvir”, acrescenta.
Segundo Solto, a comunicação individualizada é importante também para que a pessoa seja orientada adequadamente sobre os próximos passos — como a entrega de documentos necessários ao processo de demissão —, que devem ser apresentados em uma sequência organizada.
Quanto a benefícios adicionais ao mínimo legal estabelecido pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o consultor explica que eles podem ser de três tipos: bônus em dinheiro; extensão de benefícios como plano de saúde, vale alimentação e auxílio educação; e apoio à recolocação.
“A demissão tem vários envolvidos: o desligado, os familiares, a sociedade e os empregados que ficam”, diz Souto.
“Então cuidar da saída de uma forma profissional, humanizada e com responsabilidade também impulsiona a marca empregadora, para quem está saindo e leva a imagem da empresa ao mercado; para quem fica e sabe que o colega que saiu foi tratado de maneira respeitosa e com apoio; e para a marca perante a sociedade como um todo.”
Fonte: BBC News | Brasil
Fotografia: GETTY IMAGES