Filipe Vilicic
De São Paulo para a BBC News Brasil
No ramo da inteligência artificial (IA), o Brasil se sai bem quando o assunto é “talentos”. Porém muitos dos melhores profissionais brasileiros trabalham hoje para empresas e governos estrangeiros.
“É um cenário parecido com o de países como a Índia”, comenta o historiador Joe White, cientista de dados da Tortoise, grupo de mídia inglês, em entrevista à BBC News Brasil. “Nosso levantamento aponta que o talento criado em um país muitas vezes não é retido. Há uma fuga de cérebros, com êxodo para nações mais ricas.”
Essas são conclusões do The Global AI Index, pesquisa da Tortoise coordenada por White e por sua colega Serena Cesareo, também cientista de dados. O estudo avalia o cenário de 62 países no mercado de inteligência artificial, em torno de três pilares principais: investimento, inovação e implementação. O Brasil está no meio do ranking, em 35º lugar.
Os tópicos do ranking são divididos em sete categorias, respectivamente sob cada um desses três pilares: talento, infraestrutura e ambiente de operações (investimento); pesquisa e desenvolvimento (inovação); estratégia governamental e comércio (implementação).
“Nossa principal base de pesquisa para identificar talentos locais foi o Linkedin”, comenta Serena Cesareo. “Ficou evidente como o Brasil possui um grande número de profissionais no campo, tanto em termos absolutos quanto em proporcionais, em relação ao tamanho da população.”
O The Global AI Index se apresenta como a primeira pesquisa global a analisar o cenário dessa tecnologia de forma tão abrangente. Foi criado em 2019 e está em sua quarta edição. Em todas elas, os Estados Unidos lideraram o ranking, seguidos pela China.
O Brasil aparece em 35º lugar no ranking geral. Todavia, no critério “talentos”, está em 21º, à frente de países como Áustria, Bélgica, Portugal e Rússia, todos melhores colocados na listagem geral. E logo atrás da China, em 20ª neste tópico.
“Se um profissional brasileiro se forma em seu país, mora onde nasceu, só que trabalha no dia a dia para o escritório local da Microsoft, que é americana, nós o registramos como um talento brasileiro, mas que não contribui para o mercado nacional de IA, mas, sim, para o dos Estados Unidos”, diz Joe White, da Tortoise.
A comparação realizada por White com a Índia, logo no início desta reportagem, é evidenciada pelos números. Enquanto os indianos garantem um invejável segundo lugar no tópico “talentos”, estão em 14º na classificação geral.
Isso ocorre porque, em outros temas, a Índia não tem desempenho tão bom. Em “infraestrutura”, por exemplo, é quase a lanterninha da lista, na 59ª colocação. O país também vai mal em “estratégia governamental” (38ª) e “pesquisa” (30ª).
No caso do Brasil, em 21º lugar em “talentos”, os dados do levantamento apontam para carência em “estratégia governamental”, com o país em 30º lugar, assim como em indicadores impactados diretamente por ações do Estado, como em “pesquisa” e “desenvolvimento” (em 36º nesses dois âmbitos). “Esse cenário todo está ligado à fuga de cérebros do país”, resume Joe White.
Talentos perdidos
Com 31 anos de idade, e doutorado concluído em 2021 na Universidade de Princeton, o paulista Talmo Pereira rapidamente alcançou uma posição cobiçada no ramo acadêmico: a de líder de seu próprio laboratório.
Todavia, o feito foi conquistado a quase 10 mil quilômetros de distância de sua cidade natal, Campinas (SP).
No Salk Institute for Biological Studies, na cidade californiana de San Diego, nos Estados Unidos, ele está à frente de uma equipe de catorze pesquisadores e que se dedica a usar ferramentas computacionais de aprendizagem profunda (no termo em inglês, deep learning) para solucionar uma variedade de questões das biociências.
Em termos mais leigos, o neurocientista brasileiro usa a inteligência artificial como uma forma de investigar padrões biológicos em animais e humanos.
“Criamos, por exemplo, uma tecnologia que prevê movimentos de animais, mesmo de pequenos insetos”, pontua Pereira.
Na sequência, ele continua a enumerar os estudos sob seu cuidado. “Temos avançado no uso dessa ferramenta para detectar doenças, como cânceres, antes que os sintomas apareçam. Em outra pesquisa, em parceria com um museu de Los Angeles, rastreamos como as pessoas se comportam diante de obras de arte. E também temos um trabalho com a Nasa.”
O time do Talmo Lab, o nome de seu laboratório em San Diego, tem realizado estudos sob encomenda da agência espacial americana.
“Vamos enviar experimentos para a Estação Espacial Internacional. Como astronautas permanecem muito tempo no espaço, e há planos de mandá-los a Marte, meu grupo procura criar métodos de prevenir doenças que podem se desenvolver mais rápido em ambientes de baixa gravidade.”
Talmo Pereira é exemplo de um talento brasileiro que foi perdido pelo país. No ranking do The Global AI Index, da Tortoise, todo seu trabalho rende pontos para os Estados Unidos, e não para o Brasil.
“O Brasil infelizmente tem um contexto sócio-cultural, além de econômico, que prejudica quem ambiciona seguir uma carreira acadêmica”, comenta. “Eu e minha mãe migramos para os Estados Unidos em busca de condições melhores para mim.” Pereira imigrou aos 16 anos de idade, com planos de entrar em uma universidade americana. Desde então, não voltou para sua terra natal.
“O Brasil não investe tanto quanto deveria em políticas públicas que incentivem a educação, principalmente para os menos privilegiados”, opina. “Se fosse diferente, se houvesse esse incentivo, eu não teria de ter saído de meu país para procurar pelas melhores oportunidades.”
A fuga de cérebros
“Tanto o sistema público quanto o privado brasileiros têm um cenário complicado para quem trabalha na nossa área”, avalia o economista Alexandre Chiavegatto, professor de aprendizado das máquinas [machine learning] da Universidade de São Paulo (USP).
“As empresas não valorizam o quanto deveriam. O governo, preocupa-se mais em regular e restringir, do que em desenvolvimento.”
Chiavegatto fez da graduação ao doutorado na USP, onde se especializou na área de ciências de dados de saúde. O pós-doutorado, que concluiu em 2012, foi na Universidade de Harvard.
“Decidi não ficar nos Estados Unidos pois passei no concurso público da USP e pude realizar um sonho que eu tinha, de me tornar professor nessa universidade”, diz Chiavegatto. “Mas o cenário lá fora é melhor, com empresas e o governo apostando mais no setor.”
Ele é um talento que permanece no Brasil. Na USP, lidera o Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde. “Somos um time de trinta pesquisadores”, afirma. “Usamos a inteligência artificial para desenvolver algoritmos capazes de predizer e nos ajudar a combater doenças.”
Chiavegatto conta que seus melhores alunos costumam ser recrutados por universidades e empresas estrangeiras, principalmente dos Estados Unidos – o líder do mercado de IA, segundo o The Global AI Index.
“A qualidade dos trabalhos dos brasileiros nessa área é excelente, por isso acabamos por ganhar os empregos lá fora”, diz ele.
Ele cita, como “um de muitos exemplos”, o caso de Helena Schuch, que colaborou em trabalhos de seu laboratório na USP. “Agora, ela está em Harvard.”
Dentista dedicada às pesquisas acadêmicas, a gaúcha Helena, de 33 anos, é pesquisadora da Harvard School of Dental Medicine. À BBC News Brasil, ela conta que utiliza ferramentas de IA para prever incidências de problemas dentais em pacientes, em particular os de camadas mais pobres da sociedade.
“É difícil conseguir cargo de pesquisadora no Brasil”, opina ela. “Nas universidades brasileiras, é preciso se dedicar integralmente a ser professor, além de pesquisador. Isso não favorece o desenvolvimento da ciência por não aproveitar aqueles que, como eu, tem maior perfil de laboratório, não de dar aulas.”
Pesquisador da Fiocruz, o cientista da computação Paulo Carvalho, líder do laboratório de proteômica da instituição, também identifica o êxodo de talentos. “Um ex-aluno está em uma empresa do Vale do Silício. Tem um que mora no Brasil, mas trabalha para uma startup americana. Outro, na Universidade de Cincinnati. E dois foram para o Uruguai”, diz à BBC Brasil.
Segundo Carvalho contabiliza, a maioria dos estudantes de mestrado e doutorado que passaram por seu laboratório acabaram em vagas em instituições estrangeiras.
“Nos Estados Unidos, um jovem pesquisador pode ganhar três vezes mais que um sênior aqui no Brasil”, estima. “Faltam incentivos para ficar no país.”
Joe White, que elaborou o ranking global, diz que “para os países que querem subir na classificação, um caminho que tem se mostrado produtivo é o do governo criar mais possibilidades e incentivos para o setor de IA”.
Apesar das dificuldades do Brasil, o país tem melhorado no ranking.
Na edição de 2020 do The Global AI Index, o Brasil estava em 46º na classificação geral. Em 2021, avançou para 39º. Na última edição, publicada em junho (em 2022 o levantamento não foi realizado), chegou a 35º.
Os brasileiros sempre se destacam no indicador “talentos”, ficando em 35º em 2020 e em 31º, no penúltimo ranking. “O país está sendo puxado por seus profissionais, mas ao mesmo tempo apresenta dificuldade de mantê-los”, complementa White.
O que está em jogo nesse mercado? Segundo estimativa da consultoria MarketsandMarkets, trata-se de uma indústria que hoje movimenta anualmente cerca de US$ 150 bilhões (R$ 760 bilhões).
Um mercado promissor, que deve ser quase de vez maior em 2030, quando se calcula que chegará próximo de US$ 1,4 trilhão.
Fonte: BBC News | Brasil
Fotografia: ARQUIVO PESSOAL/TALMO PEREIRA